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Memória, de Apichatpong Weeraserhakul

  Uma coisa é certa em filmes de Apichatpong: você não se vê no tempo unicamente cronológico. Esse tempo-outro, mais relatado pela indistinção entre o que chamamos de passado, presente ou futuro, nos coloca em um questionamento direto sobre nossa presença no mundo atual. Memória, seu novo tratado (insisto em não chamar apenas de filme uma tese contínua), procura nos evidenciar aquela indistinção. Mas o tempo indistinto, na memória de uma colonizadora - vivida por Tilda Swinton -, mente o tempo todo. Se realiza na ficção, numa espécie de loucura. Por que isso se mostra dessa maneira? Provavelmente porque a racionalidade, o “colocar tudo nos eixos” é alguma coisa muito pouco elucidativa. Esse uso do racional para mostrar o que queremos, ou o que parece ser o “real” já se encontra há muito tempo em crise. Na memória, nós vemos uma profunda escavação arqueológica. Ela nos coloca em questão, como pessoas viventes em uma narração ocidental. Essa memória é capaz de unir a Tailândia com a Colô
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Don't Look Up - Não olhe pra cima (2021)

Quem não gostou do filme, em particular da história do filme - do enredo -, é um negacionista. Disso não resta mais nenhuma dúvida. Mas, qual será a ordem desse negacionismo que nos cerca? Esse Bolsonaro-trumpismo influente e tão ameaçador que faria, nessa historinha de filme cômico, as democracias e os próprios democratas (se é que há democratas reais no filme) aderirem ao fim do mundo? Sim, se você não percebeu ainda, os negacionistas pretendem o fim do mundo. Seja de um mundo esférico, por uma defesa do mundo plano, seja de um mundo pleno (com E) e vivido pelas multiplicidades de pessoas diferentes. Esses negacionistas que nos atordoam a toda hora na internet, e que um dia foram chamados de HATERS, hoje estão nas famílias mais democráticas de nossas Américas, são negadores tal como aquela negatividade hegeliana que se travestiu ao longo dos tempos com a terminologia "crítica". Está, portanto, aberta a porta dos infernos, a chamada caixa de Pandora, um baú da infelicidade,

A Última Floresta - Luis Bolognesi e Davi Kopenawa

A imersão de Bolognesi nos temas indígenas, em seus últimos filmes, demonstra que quando o cinema dá atenção a isso, algo se revela. Parece ser um caminho sem volta. Uma estrada sem fim. Mostrar, em imagem, os temas indígenas, tem força de revelação, sim - mas também de reativação com discussões antigas. O que faz aquele que se chama de "indígena" um caso particular. Não se fala de uma humanidade, de um humanismo nos termos que antes das colonizações de falou. Estamos diante de uma questão, um dia chamada "indígena". Estamos diante, portanto, de algumas questões que envolvem afetos e sentimentos que nos forjam como pessoas ligadas ao subjetivo indiretamente violentado e assassinado pelo contato interétnico das interiorizações do país. Davi Kopenawa tem sido um dos maiores lutadores, desde os conflitos com garimpeiros nos tempos de Serra Pelada, e também, como não dizer, na briga que ainda se vale de gritos e falsas informações sobre as terras yanomami entre Roraima

The Sound of Metal (O som do silêncio, 2019)

O neorealismo anda voltando em filmes com certo foco no festival Oscar. Mas não é o neorealismo italiano, de De Sica, Viscontti, Zavattini, etc. É um outro realismo que causa espanto, hoje nos dias de filmes da Marvel e DC, com suas propostas da técnica em CG (computação gráfica) acima de tudo. Desde Sundance e o Tribeca , festivais da costa oeste, o mercado de filmes dos EUA já não era o mesmo. Os filmes que saíram deste festival, praticamente todos, são propostas a partir do cinema independente, pois era a própria ideia de uma curadoria mais ampla, mais próxima de filmes europeus de baixo (ou quase) orçamento.  Este realismo novo que o Oscar, premiação industrial, vez em quando quer frisar como um de seus trunfos está em Lady Bird , em O Irlandês (citar Scorsese neste rol é apelar, concordo), está na vague de Spike Lee, no experimento netflix de Afonso Cuaron, Roma , em O Regresso , em Clint Eastwood, enfim - alista é enorme! É um caminho contrário aos filmes de heróis, e se pode v

Infiltrado na Klan (Spike Lee, 2018)

Spike Lee e John David Washington Difícil começar sobre este filme. Mas é possível encarar e dizer que Jordan Peele é como um produtor de novidades dentro de filmes norte-americanos, e novidades que matizam a questão racial. Básico. Racismo, nas Américas, é algo além do fato: é um fator doentio que movimenta nossa história. Peele, como Spike Lee, lutam de uma maneira integrada, ou seja, dentro do sistema, de forma imanente, contra essa forma doentia de se constituir a história. Peele parece ter uma proposta estética, que, ali próxima a Spike Lee, veste como uma luva. O encaixe está entre a dramatização do cotidiano inserindo a questão racial, junto à comédia - ou o exagero verossímil - , o absurdo. Daria pra entrarmos numa comédia do absurdo, se este tipo de teatro não fosse europeu, e pior, com desenvolvimento na ironia britânica. Os filmes da blaxplotation chegaram no limite da dramatização de costumes, e deram um tom mais popular (de uma, como diz o personagem Filipe, encarnado por

crítica: O diabo de cada dia - Antônio Campos

Depois de Hitchcock, Scorsese, Tarantino, essas cenas de violência extrema passam pra nós como algo muito comum, muito "normal". É possível vê-las, também, em games hiper-realistas, naqueles RPGs com pessoas que fogem de assassinos. A cultura norte-americana foi visivelmente construída neste grande campo do serial killer, estilizado de Norman Bates a Ted Bundy. Essas cenas estão no roteiro literário do escritor Donald Ray Pollock, que também é narrador over do filme. Diferentemente do realismo dos diretores citados no início deste texto, a agressividade é diretamente ligada à religiosidade puritana, provinciana dos Estados Unidos da América. País da liberdade, porém, armada. O fetiche, como um atributo que podemos dizer relativamente derivado dessa religiosidade, está no assassinato. Vem das guerras? É provável, como veio o pai do personagem principal, Arvin Russell. Aquele teria visto uma cruz, ensanguentada com algum corpo esquecido - e essa cruz participa do inicio ao fim
Jim Jarmusch em certa entrevista diz que gosta de ficcionalizar os momentos "entre acontecimentos". Vê-se isso em alguns de seus filmes. Paterson, um personagem, um poeta, um trabalhador, um marido, um amigo, vive entre um passado militar e um futuro que podemos dizer "espírito livre". Dá pra fazer uma certa analogia entre seu nome, o nome de seu condado-cidade, o nome de seu ônibus (local de trabalho entre-lugares), e uma filiação a um padrão de vida comum. Uma espécie de analogia do extremo oriente, que liga palavras e cria uma nova. Pater - Son. Pattern(padrão) - Son(filho). Sabe-se que os japoneses dizem assim de pessoas que se ligam a tal ou tal antepassado. Os antepassados de Paterson, vivido pelo grande ator Adam Drive (que realmente serviu a marinha, pelo que consta nas suas biografias rasteiras da net) seriam poetas, como Wiliam Carlos Wiliams, que tem um livro com o mesmo nome da cidade e seu "filho", o motorista. Ou como Allen Ginsberg, também d