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Existe uma estética do terceiro mundo?

Se não me engano, o prestígio do terceiro-mundismo esteve ligado ao entusiasmo pelas lutas de emancipação nacional e as reservas em relação à União Soviética. De fato, nada mais bem-vindo que um movimento histórico em que pareciam reunidos o antiimperialismo e o anti-stalinismo. Entretanto, por mais fundados que estes sentimentos fossem, será que abriam uma saíra nova para a humanidade? Assim, encabeçado por figuras nacionais, como Nehru, Nasser ou Castro, que propositadamente fugiam à classificação, o terceiro-mundismo deu a muita gente a impressão de inventar um caminho original, melhor que capitalismo ou comunismo. Daí o clima de profetismo e vanguarda propriamente dita eu se transmitiu a uma ala de artistas e deu envergadura e vibração estético-política a seu trabalho. Isso sem prejuízo de sua ingenuidade e demagogia, que ficarão igualmente, mas enquanto documento. Ao público patrício, provinciano pela natureza das coisas, estes artistas deram o espetáculo importante do intelectual que se debate no coração da atualidade mundial. E à intelectualidade do primeiro mundo, paralisada pelo auge capitalista da época e pelas sucessivas revelações sobre a vida soviética, davam ao espetáculo grato de uma sociedade em movimento, onde a audácia, a improvisação e sobretudo o próprio intelectual podiam alguma coisa, Mas agora, quando o ciclo da descolonização esta mais ou menos concluído e a idéia de uma industrialização indolor está afastada como ilusão pelos próprios dirigentes do terceiro mundo, o que esta do prestígio antigo?

A mística terceiro-mundista encobre o conflito de classes e traz uma visão ingênua, ainda que violenta, dos antagonismos e sobretudo das interdependências internacionais. A estética que ela inspira existe, e é herdeira dos aspectos retrógrados do nacionalismo. Para relativizar a questão por outro lado, convém lembrar também que inexiste a estética do primeiro mundo. Quanto aos países socialistas, a existência de uma estética governamental é inegável, o que é duvidoso é o seu proveito para as artes. Assim, se mesmo em países cuja realidade é bem mais aceitável, o trabalho artístico deve a sua força à negatividade, não vejo porque logo nós iríamos dar sinal positivo, de identidade nacional, a relações de opressão, exploração e confinamento. Estas são a realidade do terceiro mundo mas não constituem superioridade. Ou melhor, sendo em certa medida a realidade comum a exploradores e explorados, é compreensível que àqueles sim elas pareçam, além de um vexame, motivo de satisfação.

Em estética como em política, o terceiro mundo é parte orgânica da cena contemporânea. Sua presença é a prova viva do caráter iníquo que tomou a organização mundial da produção e da vida. E o próprio encanto que o “atraso” possa ter para quem não sofre dele é outra prova de insatisfação com as formas que tomou o progresso, formas entretanto a que o terceiro mundo aspira e para as quais não se vêem alternativas. Enfim, um quadro dificílimo, que não se compreenderá nem resolverá com mitos.

Roberto Schwarz

Comentários

Anônimo disse…
adoro schwars. uma vez escrevi um artigo sobre rap. daí, entre algumas bibliografias utilizadas, tem um livro sobre estética dele.

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