Memória, seu novo tratado (insisto em não chamar apenas de filme uma tese contínua), procura nos evidenciar aquela indistinção. Mas o tempo indistinto, na memória de uma colonizadora - vivida por Tilda Swinton -, mente o tempo todo. Se realiza na ficção, numa espécie de loucura. Por que isso se mostra dessa maneira? Provavelmente porque a racionalidade, o “colocar tudo nos eixos” é alguma coisa muito pouco elucidativa. Esse uso do racional para mostrar o que queremos, ou o que parece ser o “real” já se encontra há muito tempo em crise.
Na memória, nós vemos uma profunda escavação arqueológica. Ela nos coloca em questão, como pessoas viventes em uma narração ocidental. Essa memória é capaz de unir a Tailândia com a Colômbia, e nos deixar óbvio a relação entre a Ásia e a América Latina. Falamos muito de nossa herança africana, mas quase absolutamente nada sobre nossa herança asiática. Isso porque, aqui nos vale uma reflexão, essa nossa herança vem de antes das colonizações. Há algo a se falar ou mostrar sobre ela?
Essa memória é de ocupação de um território que parecia inabitado e morto. E, nos contam assim, a vida só se fará com as almas europeias em contato com os inabitantes da floresta - este inferno das doenças e das loucuras invisíveis. Com o olhar já forjado pelos eixos, o que antes era selvagem, agora parece esclarecido.
Infelizmente para eles, e felizmente pra nós, o saber sobre a realidade não se mostra assim. O que se chama de transe, aqui seria um acesso ao real. Ou melhor: um acesso à construção do real. A personagem de Memória passa por essa experiência, e visualiza toda a escavação monumental dessa terra inabitada. Ela se firma pelos mortos, pelos esqueletos, fósseis de um momento não contado por quem escreveu a história.
Há, portanto, uma outra memória pulsando na América Latina. Curiosamente, um diretor da Tailândia é aquele que nos tenta mostrar isso.
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