
Ele vem da Finlândia, país nórdico, gelado, no topo e no núcleo do mundo, para dirigir um documentário sobre o país amarelo de sol quente e sujo pela miséria, o Brasil. Sobre sua cultura, ou seja, sobre a música brasileira. Mika conheceu o samba devido ao sucesso que a bossa nova teve nos anos 50, 60, 70. Ele mesmo aparece pela primeira vez como personagem de seu filme segurando um vinil antigo no meio do branco de seu país. Cabe chamar a atenção: é um filme feito em primeira pessoa.
O percurso de Mika começa em Pernambuco com as mais primitivas... mudemos: as mais profundas manifestações culturais do Brasil. Ele ouve desde o início da nossa música, nossos batuques como trilha sonora dos espetáculos teatrais itinerantes, o teatro mambembe, no qual os sonoplastas usavam instrumentos leves e que produziam vários tipos de sons nos mais diversos timbres, por ser mais prático ao tocador. Daí ele se infiltra nas plantações de cana pra ver de longe, lá do meio do mato, vir os grupos de Maracatu com suas fantasias gritantes. Eles, os mestres das nações, também gritam. Mika, com um propósito de saber de onde vem aquele ritmo tão conhecido no exterior, o samba, se enfia agudo nas veias das manifestações brasileiras. Lá em Pernambuco percebemos então que essa viagem dele, esse road movie vai demorar mais que o esperado, porque o diretor não deixa passar uma coisinha, uma nota. Melhor pra quem assiste.
Uma das cenas que confirmam a precisão do diretor na busca, na pesquisa que ele faz com os ritmos daqui é quando ele encontra Caju e Castanha, emboladores de côco lá de Recife. Só que, antes disso ele ainda nos apresenta uma série de cantadores e dançadores, como os brancos Silvério Pessoa e Antônio Nóbrega e suas influências mais brilhantes, mais presentes como Jacinto Silva e os mestres negros da embolada pernambucana. É aí que surge a dupla que cantava nas ruas pra não ficar sem ter o que comer, como eles mesmo dizem. São as últimas imagens de Caju – ele deixa seu posto pra cajuzinho, seu filho. Entretanto, somos agraciados pelas primeiras imagens da dupla, eles ainda crianças, na porta de casa explicando e cantando o côco. Castanha tão falador quando velho, estava mudo nesse momento. Quem falava era Caju, aquele que mal andava ainda pouco, quando velho.
E Mika percorre um pouco da Bahia também, mas não sem antes nos preparar para a realidade dos terreiros. O Candomblé é visto como uma coisa estranha, como tudo no filme, na verdade. Talvez por isso mesmo nos dê tanta impressão de ser daquele jeito que estamos vendo. É porque não saímos da pele de Mika, que é o personagem principal do documentário, e ele é um Finlandês, oras... Um Finlandês que se interessa muitíssimo pelo que está vendo – mais que nós, que aparentemente nos iludimos com a Globo e suas novelas e não olhamos para o lado, pro vizinho: o passado.
O Finlandês transita por onde quer. Ele fala com quem quiser, e nos mostra uma cerimônia sagrada da religião afro – só pra pegar o ritmo da Bahia. Mas, em Salvador, fica só nisso, pra nossa alegria de quem assista. Ele não nos mostra nada mais que Margareth Menezes, daqueles mais famosos do carnaval baiano.
Parece até que ele passou por Salvador porque ia chegar no Rio de Janeiro. Finaliza o filme lá. Percebemos então, neste momento, como nós estamos tão a par de nossa cultura. Mika também, está mais bronzeado e com a barba feita, assim como Walter Alfaiate. Este nos demonstra, a nós embebidos pela universidade ou pela TV, que o samba não tem morrido. Esquecido talvez. É só ver Seu Jorge e Ivo Meireles, aqueles que estariam matando, trucidado o samba, tão perto do morro e do batuque. Isso gera discussão, mas Mika vê de longe, vê admirado, assim como nós – e Ivo nem nos provoca com seu funk sensual. O diretor não vê a cultura morrendo, e sim faz ela rejuvenescer em seu adormecimento.
Digo isso tudo porque é preciso um Finlandês vir aqui pra fazer um filme de realidade que beira a perfeição por sua precisão, por ser seguro do que se está falando, por ser coerente no que se está mostrando e ouvindo. Infelizmente é preciso isso – um brasileiro não conseguiria algo desse tamanho pela falta de costume cinematográfico, pela desconsideração de seu passado – porque o brasileiro vê isso tudo como algo feio. O diretor agora mora no Brasil. Já que o filme é biográfico, todos os 4 mil quilômetros que ele percorreu nos persuade a morar também. Algumas vezes, por incrível que pareça, pensei estar em outro país, como o próprio Mika, por incrível que pareça. Ele nos ensina, não só como se fazer um documentário, mas como se admirar uma cultura – que, “por acaso”, é a nossa.
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