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A morte e Glauber Rocha


Serge Daney

«Genial e incómodo; o mais conhecido – e é sem dúvida o maior – dos cineastas brasileiros estava um pouco esquecido. Cinema novo, tropicalismo, tricontinentalismo estão longe? Ele, Glauber Rocha, não esquecia nada.

A última vez que vi Glauber Rocha foi nos escritórios dos Cahiers du cinéma, perto da Bastilha. Não o conhecia, mas tinha visto os seus filmes dez anos antes. Já ninguém falava dele, excepto para dizer que tinha ficado louco ou que se tinha comprometido com o regime militar brasileiro. Tinha vindo a França mostrar, quase em bicos de pés, o seu último filme, um filme a que tinha dedicado bastante tempo, dinheiro e trabalho e que tinha deixado os festivaleiros de Veneza pelo menos perplexos. Esse chamava-se A idade da terra e não se parecia a nada de conhecido. Um filme torrencial e alucinado. Um Ovni fílmico, nem mais, nem menos. Glauber estava em Paris para tentar distribuir o seu filme, reatar alianças, fazer o ponto da situação. Falava muito, delirava certamente: nada do que dizia era insignificante.
Nos Cahiers, pedimos-lhe se aceitaria escrever ou dizer alguma coisa a propósito de Pasolini, que tinha conhecido, e a quem consagrámos então um número especial. Ele fechou-se num gabinete, e, não tendo necessidade alguma de entrevistador, falou sozinho durante horas para um pequeno gravador. Pouco à vontade, ouvíamos a sua voz veemente, o charme do sotaque brasileiro em francês, o ajuste de contas raivoso e afectuoso com PPP, as censuras post mortem. Era já um diálogo de mortos. Não o voltámos a ver, pois partiu para Portugal onde parecia trabalhar num projecto de filme. Acaba de morrer, no seu regresso ao Brasil, de complicações de uma doença de que nada sabemos.
Dos grandes agitadores do cinema moderno, Glauber Rocha era talvez o mais distante de nós. Desde logo porque, a partir dos anos 70, a sua reputação tornou-se francamente má: tinha virado a casaca, tinha dito bem dos regimes militares de Geisel e de Figueiredo e o organismo de estado do cinema, a Embrafilme, tinha enfiado muito dinheiro nesse filme fleuve e louco, o ovni-A idade da terra. Depois porque, no fundo, sempre tinha estado longe, tão longe de nós como o Brasil pode estar. Se houve aproximação foi porque nessa época de loucuras, havia ainda uma coisa que se chamava “história do cinema” que tecia sob os nossos olhos as alianças mais paradoxais. Glauber Rocha podia discutir montagem eisensteiniana com Godard, dizer em que é que Faulkner era um escritor cinematográfico, ou, paradoxo, porque era necessário considerar Buñuel um cineasta “tricontinental”. Não parecia haver diferenças entre as guerrilhas que levavam as “novas vagas” do mundo, fossem quais fossem as margens onde morriam. Resistia-se: resistia-se a Hollywood-Mosfilm, com uma mistura de revolta e de piedade. Ainda não se pensava que a América tinha ganho definitivamente no domínio das imagens e dos sons.
Em 1963, Glauber Rocha e seus amigos (Diegues, Hirzsman, Guerra, dos Santos, Saraceni, etc.) tinham publicado um panfleto: “Revisão crítica do cinema brasileiro”. Nascido na Bahia em 1938, Glauber, como toda a gente, tinha animado um cineclube e escrito críticas de filmes. Como toda a gente na América Latina, ele e os seus amigos tinham aproveitado um momento de liberalização, de uma trégua, para tentar mudar, do interior, o cinema brasileiro. Três filmes estabelecem a sua reputação: Deus e o Diabo na terra do Sol (63), Terra em transe (66), António das Mortes (68).
A crítica ocidental, sempre curiosa de folclore e ébria de rótulos, adorou esse novo cinema, esse “cinema nôvo” que Glauber simbolizava. Adorava-o tanto quanto não conhecia nada do antigo, nem do Brasil aliás. Depois, à medida que os militares voltavam a agarrar pelo pêlo o animal (e que animal!), esqueceu-o. Recambiados às suas contradições, as cabeças de cartaz do dito cinema novo afrontaram cada um por si a sequência dos acontecimentos: Glauber exila-se em 1971, Hirzsman cala-se, Ruy Guerra irá para Moçambique, apenas Diegues se torna pouco a pouco o cineasta brasileiro. Glauber Rocha, o mais evidentemente “genial” de todos, terá a evolução mais errática. Dois filmes-monstros que era preciso rever hoje em dia, Der Leone have sept cabeças (1969) e Cabeças cortadas (1970), o projecto não concluído de uma História do Brasil, um filme falhado em Itália (Claro), uma aparição-gag em Vent d’est de Godard, uma curta-metragem controversa (Di Cavalcanti), e, para acabar, A idade da terra.
Genial mas incómodo, figura vagamente admirada, temida ou desprezada da paisagem intelectual brasileira, personagem pública difícil de manipular, mesmo para os militares a quem ele tinha escandalosamente (como táctica?) elogiado os méritos mas de quem não se via como se poderia tornar refém ou o cineasta oficial. Demasiado louco. Glauber Rocha queimou assim muitas pistas, deixou muitos amigos, disse uma quantidade de coisas erradas. Em 1980, em Veneza, porta-se muito mal e insulta Louis Malle, de quem Atlantic City acabava de ser coroado. Vê por todo o lado o imperialismo americano, vê por todo o lado a mão de Hollywood.
Isto não era de ontem. Em 1967, declarava – ideia banal à época – “Os instrumentos estão em Hollywood como outros estão no Pentágono. Nenhum cineasta é suficientemente livre.” Era a época do sonho tri-continental: “As escolhas de um cineasta tri-continental intervêm no momento em que a luz bate, ou seja quando a câmara se abre para o terceiro-mundo, terra ocupada. Na rua, no deserto, nas florestas, nas cidades, a escolha impõe-se e mesmo quando a matéria for neutra, a montagem faz-se discurso. Um discurso que pode ser impreciso, difuso, bárbaro, irracional, mas em que todas as recusas são significativas.” Ao ver, catorze anos mais tarde, A idade da terra, disse-me que sobre este ponto Glauber não tinha mudado. Um filme à imagem do Brasil, “povo palavroso, falador, enérgico, estéril, histérico” (sempre segundo G.R.).
Nesse filme em que já não enganava ninguém, em que estava sozinho com o seu delírio, Glauber fazia voltar à nossa memória um sonho esquecido, esse de um outro cinema, outra coisa que o “made in USA”. Porque isto existiu, em várias épocas, essa ideia de que os cineastas de todos os continentes podiam arranjar diferentemente as imagens, propor ao cinema outra coisa que o seu triste devir-televisão ou o seu sinistro devir-museu. Um cinema de montagem, físico e discordante, um cinema-ópera para variar da opereta americana. Isto existiu outrora.
Ao reler as velhas conversas entre Glauber e os Cahiers, a imagem do profeta intratável e duvidoso com a qual se tinha acabado por confundir esfuma-se um pouco. É certo que ele foi, mais que qualquer um, o artista pequeno-burguês que todas as ortodoxias odeiam, o eterno aprendiz de feiticeiro da política, inconstante, provocador, etc. Era mesmo esse o tema de Terra em transe [2ª, dia 6, 21h30 - Cinemateca], um filme brilhante e masoquista: que ditador servirá o poeta? No entanto, o que ressalta dessas entrevistas é a prodigiosa cultura de Glauber: o seu conhecimento íntimo do cinema (incluindo o americano), a reivindicação de uma “brasileiridade” e, ao mesmo tempo, essa ideia de que existem por toda a parte, debaixo das aparências dos santos oficiais, os ídolos dos dominados. Por trás dos quais, por vezes, eles se sublevam. Os filmes de Glauber são westerns em que matadores de cangaceiros, misticismo camponês e manipulações políticas formam um único argumento. Sobre o “folclore”, tinha muito a ensinar-nos. De formação protestante, fascinado pelos rituais católicos, sabe encontrar por trás deles os deuses africanos, por trás de S. Jorge as divindades que se chamam Oxosse ou Ogun, por trás da Igreja o Candomblé.
Mas atenção, não há para ele deuses verdadeiros e falsos, há (diriam Deleuze e Guattari) deuses que “fazem rizoma”, há imagens que deslizam umas sobre as outras, todas verdadeiras e todas falsas. O que conta não é a Terra, é a Idade. Se a palavra cultura tem hoje um sentido, onde senão no Brasil? Um cineasta empoleirado no fluxo das imagens, nas línguas do mundo inteiro, quem senão Glauber? É um pouco a censura que ele fez a Pasolini nos escritórios dos Cahiers du cinéma: PPP foi perverso quando era preciso ser subversivo, mais grave: sonhou com um Cristo-Édipo quando era preciso um Cristo negro e nu.
Não espanta que a referência constante de Glauber seja Eisenstein. O autor de Potemkine tornou-se hoje, nas ruínas dos nossos cineclubes, uma glória longínqua e quase incompreensível. Esquece-se que qualquer cineasta debutante nesse lado do mundo que a si próprio se inicia (esse lado dito “terceiro”), o encontra no seu caminho. Nada de político aqui. Eisenstein faz voltar o cabaré, o circo, o travesti, a paranóia alegre, o gosto pelas formas e pelas suas metamorfoses, o pequeno e o grande, o micro e o macro. A cultura enciclopédica e o samba perante os ídolos. Fazer surgir das coisas uma beleza impura, mestiça. Para Glauber, o diálogo com Eisenstein nunca se acaba. “Mesmo para Eisenstein, a tentativa de tornar estético o Novo Mundo equivalia à de levar a palavra de Deus (e os interesses dos conquistadores) aos Índios”, diz ele. A idade da terra é um pouco, na era do vídeo, do zoom e do som sobressaturado, a resposta a S.M.E., a terceira parte de Ivan, o terrível.
Ele desconcertou, inventou, chocou, decepcionou. Nada cedeu do seu desejo. Com obstinação, não cessou de colocar uma questão que, receio, se tornou obsoleta: o que seria um cinema que não devesse nada aos USA? É talvez pedir demais. Mas quem responderá?
24 de Agosto de 1981»
Serge Daney, «La mort de Glauber Rocha», Ciné journal, Volume I / 1981-1982, Cahiers du cinéma, Paris, 1998, pp. 54-60.

retirado do blog Ainda não começamos a pensar

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