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Por que tanto Glauber?

Há de se considerar que ninguém mais aguenta ouvir o nome de Glauber como um marco no cinema brasileiro - e não saber o porquê de ele ser esse marco. Em qualquer lugar que haja um cinéfilo com olhos arregalados querendo saber das novidades do mercado de entretenimento, o nome de Glauber Rocha (tão repetido aqui neste blog que vos serve) é algo datado, se não ultrapassado, velho, antigo, sem referencial atual. Dá até pra concordar a respeito da não atualidade. Mas que tipo de atualidade é que se imagina nessa tentativa de representação cinematográfica contemporânea?

Glauber é nicho de pesquisa sobre o audiovisual latinoamericano. Ele, dito abaixo no texto de Guerra Conjugal, foi como Oswald de Andrade ao dissecar a linguagem poética. E, se estes dois ficam em seu tempo, é muito porque a poesia hoje não faz mais muito sentido - o pragmatismo da imagem útil toma a dianteira da paleta de planos. Glauber Rocha desimagina o que se imaginou até sua presença no meio visual, e re-edita o início do cinema no Brasil. Se ele foi, e ainda é, um marco no cinema terceiromundista, muito se deve à esse uso lúdico que ele faz das imagens da miséria, aliado à tentativa de pensamento sobre o que se vê do novo mundo pobre.

Como Oswald, também, ele queria reunir o que de mais relevante socialmente (ou sociologicamente) existiu no interior do continente. Por pouco Glauber não filmou nos EUA e no México. Também no Chile. Infelizmente, aquilo que era motor de muitas alucinações surrealistas e contestadoras nas artes daqui, também fez com que algumas forças criativas tivessem que exilar-se para não sofrerem retaliações físicas. A ditatura conservadora, aliada à elite tradicionalista, expulsou tudo o que se assemelhava aos estilos mais socialistas. Na arte, o Brasil então perde a criatividade, ao lado da liberdade.

Glauber tenta refletir à sua maneira fazendo filmes na África, Itália, França, na Cuba socialista e na Espanha. Já próximo ao fim de sua vida ele também vai a Portugal e volta para o processo de Abertura (com o programa na TV Tupi) nesse lobby contra o tradicionalismo tacanho, próprio ainda da antiga dimensão ética colonial. Ele morre como Darcy Ribeiro, mas muito mais amargurado com o andar econômico do mundo. Amargura-se com a morte repentina da irmã; com os antigos amigos do cinema novo; com a noção que o mobilizava, de nação forte e relevante.

Logo após sua morte o Brasil finalmente se abre ao capital estrangeiro junto à abertura política. Sem ditatura era igual a sem nacionalismo - o passado, então, se aliava a todas as intempéries que fariam o grupo do cinema novo dialogar abertamente com ditadores, e com a TV. Era o prenúncio da derrocada, e por consequência, uma derrota da força criativa socializante. Morria Glauber, como se vê no artigo de Serge Daney, e com ele ia-se algo de imperfeito. Uma imperfeição viva, alegre, própria de nosso andamento. O que chegava para substituir isso? A atuação no mercado, longe de drogas lisérgicas, de alucinações ou depressões. Algo que ficaria, e fica, por muito tempo ainda, logo aqui, do nosso lado - nós tão cordiais.

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