A sensibilidade do filme Aquarius é de tocar em assuntos que são de debates políticos viciados - tornados inclusive fetichizados - , e mostrá-los de uma maneira como se fosse a primeira vez que experienciamos aquilo. Uma orgia com Wesley Safadão; um papo da juventude reacionária filha da casa grande racista com a protagonista; uma invasão do cotidiano evangélico e religioso em nossa privacidade; a dificuldade em remontar a história de escravidão do trabalho doméstico...
A própria Clara é uma remanescente da casa grande, óbvio. Ela tem a experiência da ocupação dos espaços por uma "nova direita" que, pior que a velha, é agressiva na adaptação ao mercado. Tudo o que é viciado no olhar deixa de ser "discutível". O filme então pode trazer aos que se beneficiam do mercado imobiliário, das igrejas pentecostais, da exploração do trabalho doméstico, do mercado de músicas "pancadas", portanto, um outro olhar sobre isso tudo. É como se estivéssemos vendo tudo o que nos é muito comum pela primeira vez.
Sônia Braga, personagem principal, já foi a Dona Flor, A dama do lotação, a mulher aranha, já passou por filmes internacionais, pelo Oscar, pelos festivais europeus, parou metaforicamente numa data anterior à que temos vivido. É assim que também vemos Clara, protagonista de Aquarius. Há aquela recusa que se percebe em alguns remanescentes do vigor de uma época de revolução cultural atualmente.
Aquilo que acontece em Cannes este ano só vem a juntar mais força ao filme. Mesmo Sônia, como se vê na foto, tentou chamar atenção para o que acontece no ambiente político-institucional no país. A história, sempre irônica, mostra Sônia no papel de um gênero (o feminino da geração de Aquário) sendo levada pela opressão masculina-coronelista a sair de cena. Real, ficcional, imaginário, tudo se coaduna nesse ato político do festival.
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