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Coringa – características do neofascista


Este filme tem puxado muita atenção de quem tem no mínimo um interesse pelo que vem acontecendo pelo mundo – e, claro, nos países mais afastados do núcleo duro do capitalismo. Tipo o Chile (ver foto). Mascarados foram às ruas tanto no Brasil de 2013 quanto hoje em países como Equador, Iraque, Turquia, etc. O engraçado: foram chamados de neofascistas pela esquerda moderada... O caso “Coringa”, eu diria, não é o mesmo dos Black Block: movimento anarquista que teve força na Europa, tempos depois em vários outros países. O Coringa é um tipo psicopata, fora de qualquer moralismo.
Boa parte dos que falam com certo gosto pelo filme afirma que Coringa é sobre “como nasce um criminoso”. Um criminoso qualquer. Pegamos uma pessoa que vive no subúrbio de uma grande cidade, trabalhador, filho de mãe solteira, num emprego precário, ridicularizado por boa parte da sociedade, um chamado “fracassado” da periferia. Este tipo “loser”, num acesso psicótico gradual em que tem delírios de grandeza, ganha um poder através – somente -, da ameaça aos que lhe ameaçam.
Arthur, o pré-coringa, é um desses rapazes que se vêem num limbo do social, na cidade de Gotham. Sua mãe havia sido, por muito tempo, uma empregada de um dos milionários locais. Segundo conta uma versão da história, ela teria, aliás, tido um caso com o tal milionário. Nada fica muito claro na história, que embaça a narrativa – da mesma maneira que nos fazem os delírios do personagem principal.
Mas, o que as pessoas que psicologizam Coringa não falam diretamente, é de uma espécie de “delírio de grandeza” do personagem.

A dita “grandeza” de coringa
Delírios de grandeza do personagem estão relacionados a seu trabalho. É um palhaço. Um palhaço que, sendo sem graça, atinge o constrangimento de se viver – da vida comum dentro de um espetáculo. A falta de graça dele é sua ironia, que o destaca como uma pessoa “corajosa” diante da grande loucura da vida comum alienada. Um descontentamento geral toma conta da cidade, do lugar. Esse palhaço, sem graça, por um tipo de disfunção patológica, ri de sua condição pauperizada e completamente alienada do mundo. Um novo tipo de herói?
Este herói é o herói que se assemelha àquele que se associa ao chamado neofascismo. Ele se utiliza do poder midiático do espetáculo para construir sua grandeza. Seu riso histriônico é de sarcasmo, agora que é midiatizado e espetacularizado. Não é mais de autocomiseração. Sua patologia corporal faz com que seus delírios de impotência se transformem, como que num dispositivo ligado, em delírios de grandeza. Ele é maior que qualquer um, ali, no imundo de corrupção que o faz ser do jeito que é – uma pessoa que sofre.
Todos vêem seu sofrimento, dor, se transformar em uma espécie de poder de influência. Os descontentes, inflados de ódio, assumem seu rosto sarcástico e cínico diante das “imundices” do “mundo” e decidem usá-lo.
Um rosto que diz: sorria, você está sendo filmado.

Sorria, você está sendo filmado
O neofascista adora uma câmera, porém, tudo o que ele adora é desdenhado por ele. Um cínico, como a grande maioria dos seus seguidores. Um cínico influenciador. O ponto de virada do roteiro do filme de Todd Phillips é quando Coringa recebe uma arma de um colega de trabalho: para sua autodefesa.
Ele  então, com uma arma em mãos, se torna outra pessoa. Não faz mais sinal de arminha: ele mira, e atira.
Sabe-se que nos EUA, há diversos casos de pessoas com os chamados distúrbios psicológicos que, quando armados, causam mortes e até tragédias em massa. Porém, o caso de Coringa se difere do “comum”. Ele se torna um influenciador – sendo um péssimo comediante de Standup. Bom relatar aqui: todos os comediantes de standup são influenciadores nas redes sociais.
Com a arma, Coringa sente-se mais poderoso. E realmente é. Ele agora tem o poder de fazer aquilo que outros comuns não têm: o de matar.
Um assassino em série, nos EUA, pode até ser uma pessoa famosa, como no caso de Ted Bundy. Mas o personagem do filme Coringa não se encaixa nessa fama. Ele é uma referência, um tipo de contraria “todo o sistema”, que cria atos públicos como espetáculos – para estar no topo do que se fala nos jornais. É uma pessoa que entende não do espetáculo midiático – ele entende, sim, do espetáculo da política. E usa a mídia para atingir seus objetivos - na espontaneidade e naturalidade de alguém despolitizado.
Está aí, então, descrito no filme, o nascimento de um neofascista. Ele ri da grande mídia, usa dela como seu instrumento. Ela, contrária ao mesmo, faz sua propaganda. E o cinismo que impera, cresce, aplaudindo o sorriso doente.
Seria o personagem um tipo de previsão dos acontecimentos atuais da política institucionalizada? Não chegaria a essa conclusão. Mas Coringa com certeza questiona essa adoração cínica. Questiona, principalmente, o crescimento de alguns distúrbios políticos sem projeto algum: apenas o gosto pela catástrofe e o entusiasmo pelo caos.

E se os despossuídos revidarem?
Essa foi a pergunta feita por Michael Moore e sua leitura do filme, ressoada por Slavoj Zizek, nos EUA. Quem leu até aqui percebeu que o texto discorda dessa postura que observa o potencial cínico como um revolucionário. Um cínico que delira, em uma psicose que se multiplica sem freios: à procura por uma solução imediata. Todos sabemos que é preciso organização selvagem (mesmo no corpo sem órgãos da multidão existe um dispositivo que se coloca como revolucionário na mutação constante de sua inapreensão... o que faz denotar que a organização tem um tipo de constância em série, longe da loucura impalpável). A ação dos despossuídos é sim, um sintoma da América atual usurpada pelo capital fictício. Vejamos o que fala Zizek em seu texto O grau zero da revolução, traduzido pelo site DCM- Diário do Centro do Mundo:

É preciso ainda uma mudança adicional de postura subjetiva para que se passe das explosões do Coringa e se torne capaz de “se erguer e lutar e focar sua atenção no poder de não violência que você carrega em suas mãos todos os dias”. Quando você se torna consciente desse poder, pode renunciar à violência corporal brutal. E o paradoxo é que você se torna verdadeiramente violento (no sentido de apresentar uma ameaça ao sistema existente) somente quando renuncia a violência física. Isso não significa que o ato do Coringa constitui um beco sem saída a ser evitado – a lição de Coringa é que nós precisamos atravessar esse grau zero a fim de nos despirmos das ilusões que inerentes à ordem existente.

Bem... sabemos que Coringa adquire sua postura dita revolucionária com assassinatos. Ou seja: não é bem esse grau zero do personagem. Uma crença de que o proletário pode tomar sua consciência, portanto, ainda é a chave do texto de Zizek. Como se vê aqui:

A elegância de Coringa reside em como a passagem crucial do impulso autodestrutivo a um “novo desejo” por um projeto político emancipatório se encontra ausente da trama. Assim, nós, os espectadores, somos convocados a preencher essa lacuna.

A elegância de Coringa, ao menos neste filme de 2019, é a de um delírio. Ele é um showman que acredita ser filho de um bilionário – e é deste delírio, junto à sua arma, que surge o personagem: ainda que dentro de uma empatia cínica construída pela narrativa.
Não nos cabe alerta, mas... É notável na história (e sabemos hoje no Brasil) que desse tipo de grau zero, vieram governos deteriorados e extremamente perigosos em seus discursos.

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