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A Cruz -- I

Morte em todos os lados, no nosso quadrado fechado
Antes o sacrifício era feito por consenso da tribo, aquele sacrifício que purgava toda a comunidade – trazia a catarse. O escolhido para ser sacrificado era o que nós hoje chamamos de bode espiatório, o laranja, uma pessoa que de vez em quando nem tem muito a ver com o mal que assola o universo da tribo, mas é enforcado, queimado, assassinado a fim de dar uma lição moralista e religiosa a quem quiser fazer coisas que prejudiquem o sentido do bem dos integrados à comunidade.


Na era dos Romanos, em Jerusalém, na Galiléia, muitos sofriam a pena de morte como sacrifício perante os cidadãos romanos. Era dura lex, sede lex. A lei de Talião, do olho por olho, dente por dente, há pouco tempo tinha sido suplementada pela lex romana – nos moldes que somos ensinados até hoje nos cursos de direito. Uma das maneiras de se assassinar o escolhido pela tribo, nesta ocasião, era a crucificação com pena de morte.

O sacrificado pela tribo era, depois de escolhido, pregado numa cruz em cima de uma montanha – para que todos vejam e sintam a dor do escolhido, e não repitam o que ele fez. Seria como se, hoje em dia, filmassem aqueles que vão pra cadeira elétrica e passassem em horário nobre, depois do jantar.

Aqueles bodes espiatórios ficavam dias pendurados numa cruz, numa tortura ao ar aberto. Os Judeus costumavam sacrificar animais, para seu deus, com fins de trazer a paz e agradá-lo. Com a evolução da comunidade – a lei romana, o sacrifício passou a ser feito com homens para servir de exemplo. Era uma transposição da coerção do deus que vive no céu, para o deus ESTADO, mais humano e material, que vive na terra.

É então, que certo dia, chega um rapaz que percebe a exploração romana imperialista – uma dominação sem pudores, sem escrúpulos, corrupta e massacrante. Uma dominação burocrática, e sem muita razão, a não ser a própria exploração de seu povo hebreu ( judeu). Esse rapaz se chamou Jesus Nazareno, depois chamado de Cristo – o escolhido por Deus. Mais tarde, pelos homens.

Na verdade, os judeus eram mais místicos que os romanos. Hoje eles ainda oram e passam por rituais para Alah. Essa tribo não conseguia tirar os olhos do céu, e ver que podiam, através de uma aglomeração política, tentar sua independência. Na realidade isso era muito difícil, e talvez impossível, tal o tamanho do exército romano. Compara-se o imperialismo romano ao norte-americano de hoje com uma certa razão nas analogias. Ficavam, então, submetidos - e de vez em quando corrompidos pela política civilizatória de Roma.

Jesus entende que ser revolucionário, ou contestador naquele momento era algo necessário para seu povo. Sem querer entrar em seus milagres, ou magias não explicadas a não ser através da fé que o povo tinha em seu deus, vou chamar a atenção de você que leu até agora para o fato de ele, o filho escolhido do deus dos Judeus – Javé – ter sido crucificado.

Ele, segundo o que conta a Bíblia, era sim um subversivo ao governo romano. Um profeta, um místico, uma pessoa fora da realidade romana, esta que via tudo do mundo em papéis, palavras, leis. Mas a ciência não explica a razão de Jesus, porque ele era algo muito maior que um político contestador. Foi então que Roma percebeu como este rapaz estava representando seu povo, e fez o jogo que deveria ser feito. Mas na tangente estavam os profetas judeus, que não concordavam (e até hoje não concordam) com o rapaz que mobilizava uma massa através de pregações humanistas, uma nova filosofia de vida para aqueles que só viam saída nas preces e orações a Javé – e ficavam inertes, sendo dominados por aqueles que eram mais conscientes do poder. Jesus criticava aquele que dizia ser seu pai, o próprio deus de todos aqueles palestinos.

O revolucionário foi mandado pelos profetas judeus, que se viam ameaçados em sua religião, aos romanos. Mas Roma não se interessava pelo assunto dos inferiores e bárbaros hebreus, então deixou para a própria tribo escolher o destino do contestador. A massa clamou pela crucificação.

É aí que começa toda a paixão de Cristo, no sentido de sofrimento e dor. De tão sábio que o subversivo era, ele já sabia que ia ser assassinado e por isso pediu pelos maiores sofrimentos que um homem pode suportar, talvez como teste físico, talvez como prova de sua divindade... Depois de muita tortura, ele é pregado na cruz, na mesma lógica de qualquer um subjugado à pena de morte que sirva de lição. A doutrina de segurança nacional não existia, mas segue o mesmo funcionamento dos romanos. Uma coisa Jesus não entendeu, porque não tinha lido alguns livros anarquistas: o deus é o Estado.

Nisso, Jesus passou de escolhido por deus para escolhido pela comunidade para uma purgação de seus desejos animalescos de assistir ao famoso místico ser morto pela sociedade que traz o progresso (Roma). Apenas um ser humano que queria apenas mais liberdade, ainda sim foi traido por moedas, e julgado da maneira mais proba. Em sua última frase ele então expulsa seu pai da luta: “Por quê me abandonaste?”. Para ele, seu pai o ajudaria a conseguir a libertação do povo palestino dos corruptos profetas judeus, e da sociedade opressora romana, a qual o mundo se via englobado culturalmente e vitalmente. Mas seu pai não o fez. Tudo ficou pra Jesus, que depois de alguns anos foi reconhecido como um deus humano que passou pela terra.

A representação da cruz serve, hoje para outros propósitos. Ela não é mais alegórica, não traz todos estes sentidos de libertação - um símbolo revolucionário que os oprimidos mostrariam àqueles que os torturam explorando seu corpo e sua vida, e diriam gritando: “eu sou forte como aquele que morreu na cruz, pode me matar que virão outros”. Hoje a cruz é algo inverso.

Já vi a cruz como símbolo da via crucis, um adereço do sofrimento, mas hoje ela é mais um adorno de salas. É um souvenir, uma faca, como em Viridiana, de Buñuel. A cruz serve hoje para dizer quem é cidadão de bem, quem tem valor na sociedade. Quem precisa de deus para servir ao progresso, quem é o mais superior dos cristãos e nega os negros. Uma encruzilhada serve ainda para darmos oferendas, trabalhos aos nossos ancestrais mortos – nossos arquétipos, os deuses não cristãos. Tem também a cruz da saúde - a cruz vermelha. Mas não falo dessas cruz – falo da de Jesus.

Como eu disse, o pai o abandonou, e deixou os males para que ele mesmo sacrificasse. Deixou a terra para os homens, e largou seus filhos para viverem sós. Os romanos entenderam, e adotaram cristo depois da jornada de Paulo de Tarso. Atualmente, temos um sentido muito perverso nesse ato de deus para com seu filho. Isto porque além dele ter nos deixado sem saída ao interpretar a crucificação do seu filho mais próximo, ele fez do mito de um homem talvez mais forte que ele próprio. Cabe perfeitamente à visão científica dosada de humanismo, e cabe também ao misticismo de uma filosofia pragmática que vê efetividade nos atos humanos.

Jesus morreu por causa de seu pai. Sendo mais claro – ele foi assassinado por seu pai. O justiceiro mostra mais uma vez, depois de todo o antigo testamento, a sua face destruidora, e desoladora. Provoca em todos a covardia – e que todos vivam a idade média nas trevas da fé e compaixão desmedidas, na falta de pensamentos sobre a vida material. Jesus passa de revolucionário para um dos cordeiros que foi morto para que o restante viva em mais profunda paz. E vemos todos os dias este símbolo do assassinato de um filho pelo pai, para que saibamos o quão insignificantes nós somos perante Jesus, um grande homem castrado pelo espectro mais forte que já se ouviu falar em todas as histórias das civilizações: Javé.

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