03/09/2004
Moradores de rua discursam: um dia histórico na Câmara Municipal de SP
por ALCEU LUÍS CASTILHO
Cinqüenta e quatro das 55 cadeiras utilizadas pelos vereadores paulistanos foram ocupadas nesta quinta-feira por representantes das pessoas em situação de rua, na Câmara Municipal. Uma vela foi acendida na mesa do plenário, em homenagem aos seis moradores de rua assassinados a pauladas ali bem perto, na região da Praça da Sé. O hino nacional foi tocado e teve seu som interrompido na metade. Todos continuaram cantando.
Eram sobreviventes. Cerca de 15 deles empunharam o microfone e falaram - seus discursos serão publicados no Diário Oficial do Município. Falaram sobre a chacina, contaram como vivem, cobraram do poder público, da sociedade e da mídia ações sistemáticas em relação à população de rua. Emocionaram-se. Ganharam aplausos. Alguns falaram apenas uma frase. Outros, discursos com direito a citações da mais valia, o conceito marxista, ou de história egípcia. Todos voltavam de suas cadeiras orgulhosos. Depois, votaram.
Em votação simbólica comandada por um deles, os vereadores de rua simularam decisões sobre projetos de lei de seu interesse - relativos a situação de rua, saúde, emprego. O projeto mais aplaudido? A criação de banheiros públicos. Inclusive nas subprefeituras e na própria Câmara. “É um dia histórico”, disseram vários. Efeito direto da chacina no centro de São Paulo, 450 anos, o Palácio Anchieta ofereceu naqueles instantes a uma população de excluídos o único momento de integração plena no Estado Democrático de Direito.
“Engatinhando”
Cada morador era chamado ao microfone – a maioria o utilizava pela primeira vez. A sessão foi convocada pela presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, Lucila Pizani (PT). Ao seu lado estava o padre Júlio Lancelotti, da Pastoral de Rua, a pastora Mabel Andrade Garcia, e os vereadores Alcides Amazonas (PC do B) e Flávia Pereira (PT), da comissão. Beto Custódio (PT), também da comissão, chegou atrasado. Roberto Trípoli (PSDB) não compareceu. Mais à frente, chegou o presidente da Casa, Arselino Tatto (PT), que declarou serem os projetos apresentados “factíveis e fáceis de implementar”.
A 55ª cadeira foi ocupada no início da sessão pelo vereador Erasmo Dias (PP), que discutiu com um morador de rua e deixou o plenário sob vaias.
Confira algumas das falas dos moradores de rua:
“Quero fazer um pedido formal. Não sou morador de rua, sou desempregado há sete anos e dependo da organização Rede Rua. Quero suplicar a esses racistas que parem com isso. Porque aqui é o Brasil. Se continuar assim não vai dar certo para nós. Sugiro um decreto proibindo as pessoas nas ruas. Estão servindo como lixo. É uma deselegância, como disse o Erasmo Dias. Eu não o culpo por isso.” (senhor Naelson)
“A gente sai do Estado da gente por um destino melhor. Mas não é isso o que acontece. A gente não pode nem dormir na rua nem andar nessa cidade de cabeça erguida. Fica com receio de um paulistano olhar de cabeça torta para a gente. Não quero que pensem que somos lixo, que não sabemos fazer nada. Soube que há autoridades presentes. Quero saber o que vocês estão fazendo para isso.” (senhor Paulo Sérgio)
“Para mim é importante ocupar espaços. Um trabalho como formiguinhas, exercer o direito de cidadão. Me sinto emocionado, é um dia histórico. Este é um momento ímpar. A coisa continuou, mesmo com a Polícia Federal, o empenho do DHPP (Departamento de Homicídios) a coisa está aí. Morreu mais um esta noite. Eu peço cooperativas. Conheci a mais valia. Não vou deixar ninguém me explorar.” (senhor Renato Sena)
“A população de rua vem sofrendo desde 94, quando foi eleito Fernando Henrique Cardoso, com o Plano Real. O emprego sumiu. Hoje estamos sozinhos, pedindo emprego a cada um que aqui está. Necessitamos de apoio? Necessitamos. Será que se essa chacina não fosse em tempo de eleição, teria televisão, rádio, jornal? Teve muitos casos para trás, ninguém se manifestou. Quem aparece na televisão é ator e atriz, nós queremos é solução. Não é televisão que vai encher nossa barriga.” (senhor Leonardo Santos de Oliveira)
“O brasileiro sabe suportar muitas coisas: essa situação econômica, a corrupção. Vai chegar um dia que não vai poder suportar o peso. Devemos não remediar, mas sim fazer com que essa ferida se cure, e não fique uma marca ainda mais aberta que atualmente. Para ter um país desenvolvido, não basta ver o saldo social – o amparo, o agasalho, o cobertor, a comida, o emprego. Mas de que adianta tudo isso se não tem dignidade, se a gente não amar o próximo? A gente ainda está engatinhando, em pleno 2000. É por aí que a gente vai começar a ser mais feliz. Se formos construir o Brasil, devemos construir o nosso interior, a nossa alma.” (senhor Edson)
Moradores de rua discursam: um dia histórico na Câmara Municipal de SP
por ALCEU LUÍS CASTILHO
Cinqüenta e quatro das 55 cadeiras utilizadas pelos vereadores paulistanos foram ocupadas nesta quinta-feira por representantes das pessoas em situação de rua, na Câmara Municipal. Uma vela foi acendida na mesa do plenário, em homenagem aos seis moradores de rua assassinados a pauladas ali bem perto, na região da Praça da Sé. O hino nacional foi tocado e teve seu som interrompido na metade. Todos continuaram cantando.
Eram sobreviventes. Cerca de 15 deles empunharam o microfone e falaram - seus discursos serão publicados no Diário Oficial do Município. Falaram sobre a chacina, contaram como vivem, cobraram do poder público, da sociedade e da mídia ações sistemáticas em relação à população de rua. Emocionaram-se. Ganharam aplausos. Alguns falaram apenas uma frase. Outros, discursos com direito a citações da mais valia, o conceito marxista, ou de história egípcia. Todos voltavam de suas cadeiras orgulhosos. Depois, votaram.
Em votação simbólica comandada por um deles, os vereadores de rua simularam decisões sobre projetos de lei de seu interesse - relativos a situação de rua, saúde, emprego. O projeto mais aplaudido? A criação de banheiros públicos. Inclusive nas subprefeituras e na própria Câmara. “É um dia histórico”, disseram vários. Efeito direto da chacina no centro de São Paulo, 450 anos, o Palácio Anchieta ofereceu naqueles instantes a uma população de excluídos o único momento de integração plena no Estado Democrático de Direito.
“Engatinhando”
Cada morador era chamado ao microfone – a maioria o utilizava pela primeira vez. A sessão foi convocada pela presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, Lucila Pizani (PT). Ao seu lado estava o padre Júlio Lancelotti, da Pastoral de Rua, a pastora Mabel Andrade Garcia, e os vereadores Alcides Amazonas (PC do B) e Flávia Pereira (PT), da comissão. Beto Custódio (PT), também da comissão, chegou atrasado. Roberto Trípoli (PSDB) não compareceu. Mais à frente, chegou o presidente da Casa, Arselino Tatto (PT), que declarou serem os projetos apresentados “factíveis e fáceis de implementar”.
A 55ª cadeira foi ocupada no início da sessão pelo vereador Erasmo Dias (PP), que discutiu com um morador de rua e deixou o plenário sob vaias.
Confira algumas das falas dos moradores de rua:
“Quero fazer um pedido formal. Não sou morador de rua, sou desempregado há sete anos e dependo da organização Rede Rua. Quero suplicar a esses racistas que parem com isso. Porque aqui é o Brasil. Se continuar assim não vai dar certo para nós. Sugiro um decreto proibindo as pessoas nas ruas. Estão servindo como lixo. É uma deselegância, como disse o Erasmo Dias. Eu não o culpo por isso.” (senhor Naelson)
“A gente sai do Estado da gente por um destino melhor. Mas não é isso o que acontece. A gente não pode nem dormir na rua nem andar nessa cidade de cabeça erguida. Fica com receio de um paulistano olhar de cabeça torta para a gente. Não quero que pensem que somos lixo, que não sabemos fazer nada. Soube que há autoridades presentes. Quero saber o que vocês estão fazendo para isso.” (senhor Paulo Sérgio)
“Para mim é importante ocupar espaços. Um trabalho como formiguinhas, exercer o direito de cidadão. Me sinto emocionado, é um dia histórico. Este é um momento ímpar. A coisa continuou, mesmo com a Polícia Federal, o empenho do DHPP (Departamento de Homicídios) a coisa está aí. Morreu mais um esta noite. Eu peço cooperativas. Conheci a mais valia. Não vou deixar ninguém me explorar.” (senhor Renato Sena)
“A população de rua vem sofrendo desde 94, quando foi eleito Fernando Henrique Cardoso, com o Plano Real. O emprego sumiu. Hoje estamos sozinhos, pedindo emprego a cada um que aqui está. Necessitamos de apoio? Necessitamos. Será que se essa chacina não fosse em tempo de eleição, teria televisão, rádio, jornal? Teve muitos casos para trás, ninguém se manifestou. Quem aparece na televisão é ator e atriz, nós queremos é solução. Não é televisão que vai encher nossa barriga.” (senhor Leonardo Santos de Oliveira)
“O brasileiro sabe suportar muitas coisas: essa situação econômica, a corrupção. Vai chegar um dia que não vai poder suportar o peso. Devemos não remediar, mas sim fazer com que essa ferida se cure, e não fique uma marca ainda mais aberta que atualmente. Para ter um país desenvolvido, não basta ver o saldo social – o amparo, o agasalho, o cobertor, a comida, o emprego. Mas de que adianta tudo isso se não tem dignidade, se a gente não amar o próximo? A gente ainda está engatinhando, em pleno 2000. É por aí que a gente vai começar a ser mais feliz. Se formos construir o Brasil, devemos construir o nosso interior, a nossa alma.” (senhor Edson)
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