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Sans Soleil - Chris Marker - 1983

Florence Delay fala durante um filme documentário, Sans Soleil, sobre a memória. As lembranças que já se tornam lembranças durante o mesmo filme. O tema de uma estética que já percebe algo de antigo na modernidade, algo que Chris Marker e a câmera stylo escreve perante nossos olhos. Se algum dia houve uma perspectiva de revolução, como em um Medvedkine de Besançon, grupo no qual Marker e alguns "guerrilheiros" do cinema fabricavam filmes, agora isso não passa de romantismo ou nostalgia.

Estamos na década de 80, é bom lembrar. Lembremos também que nessa década o Japão exportou seu espetáculo midiático para o mundo. Minha infância teve que consumir Jaspion, Akira, Mangás, samurais, lutas marciais, todo o universo kitsch da terra do sol nascente (ou poente). Heiddegger mesmo, filósofo adorado pelos franceses, já diria que o Ser não mais teria sustento no mundo ocidental - estaríamos prestes a acabar com os resquícios de nosso deus maior, nossa consciência, nosso louvor a um eixo somente. O ser está aí - no mundo. Foi assim que as ideologias se acabaram, e qualquer movimento contra algo conservador pareceria romântico. E é assim que vemos a concorrência pelos produtos "religiosos" que o capitalismo nos joga, como "seres aí", também - aparentemente sem donos. Até porque o tempo, uma espiral como em Hitchcock, provoca uma inevitabilidade entre a vítima e o caçador.

Consumimos desde a morte de uma girafa, como a voz alterada, o som, a trilha sonora de Modeste Moussorgski (Sans Soleil - Sem Sol), até os rituais cosmopolitas de Tokyo. Os animais aparecem no filme como os eternos em êxtase - que vivem numa religiosa movimentação. Tais como os homens, mesmo em um período de fim de uma crença socialista. Os gatos, os cães, as aves e suas representações pctóricas - os símbolos tomam conta da completude da realidade. É o mundo desconhecido de um país que recebeu duas bombas atômicas e cresceu como nenhuma outra nação jamais conseguiu.

Porém, Cabo Verde é também filmada pelo documentário, que contrapõe imagens de um desenvolvimento tecnológico japonês e o atraso absurdo, na ironia. de pessoas que olham para a câmera insistentemente. Os negros da África, completamente diferentes dos japoneses, possuem algo de humano que os aproxima, que são justamente os rituais dos espetáculos. E na África o que ainda perdura são as armas, na tentativa de mudança.

O filme não assume crítica, pelo contrário. Não parece, também, estar desiludido com as novas tecnologias vindas da Ásia. É uma nova etapa do capitalismo, cheia de inovações devido a criatividade milenar dos jovens japoneses. E lá se foi uma moda francesa de cinema contestador, que havia tirado as fotos do Cahiers du Cinéma, e levado o althusserianismo e a Cinéthique a uma crítica final ao dispositivo do cinema. Em frente teríamos uma década de 80 completamente integrada às inovações e experimentações tecnológicas numa guerra de imaginações entre os EUA e o Japão.

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