Um filme de herói para a elite, como bem diz o nome
Seguindo a fôrma de Cidade de Deus, assistimos a um filme narrado em primeira pessoa por uma voz que parece vir de qualquer lugar, menos do universo do filme. A diferença na fôrma é que em Tropa de Elite quem nos narra é o Capitão Nascimento, um personagem que ganha dimensões heróicas em tempos de violência no Brasil. Esse capitão é evocado em discussões sobre o problema do tráfico e da criminalidade no Rio, e seu papel é o de purificar nossas almas tão covardes diante da favela, aqueles morros desconhecidos cheios de guerrilheiros e incivilizados.
Vejam só: nenhum personagem adulto que vemos em Tropa que mora na favela é íntegro. Sim, nenhum. Por outro lado, vemos o grupo de elite da PM tendo que perder, praticamente, sua identidade em razão da salvação de todos. Capitão Nascimento, interpretado pelo elogiadíssimo Wagner Moura, sofre na família o peso da responsabilidade que tem em seu emprego. Mas qual herói não sofre esse dilema? Peguemos o Superman. Ele até tem vontade de casar, constituir família com Louis Lane, ser uma pessoa “comum” personificando-se
Os vilões que vivem no universo arquitetônico da favela são das mais diversas classes. O “câncer” do tráfico de drogas chega até às famílias bem vestidas da burguesia carioca com suas ONGs caridosas que servem de aparelhos para políticos. É aí que os heróis da tropa, em suas reuniões em gabinete como a sala de justiça, decidem atuar para defender não só o Estado, mas a fé cristã, na vinda do Papa ao Rio de Janeiro. Nessa defesa à integridade e à pureza de espírito, a morte de inocentes coniventes com a criminalidade é inevitável, caro espectador. “Não se assuste com esse genocídio, apesar dele ser verossímil” nos diz o filme.
Nós atualmente vivemos uma onda de filmes de heróis em quadrinhos vindos dos enlatados hollywoodianos junto à Marvel e a DC – de Homem-Aranha , X-Men a Os 300 de Esparta. Depois de uma crise habitual de criatividade, o cinema americano recomeça a se instituir nessa mitificação vinda das HQs. Esse jogo dos mocinhos contra os vilões, no entanto, é antigo no cinema de lá: vide o Western. Só que a luta hoje se dá não mais nos campos, na natureza, no deserto. Ela acontece nas metrópoles, em cidades grandes e caóticas – a purificação parece ser impossível nesse lugar da velocidade e da fugacidade. É preciso que os heróis voem, saltem entre os prédios, passem por treinamentos especiais e andem em “caveirões” dando tiros pra qualquer lado, num jogo virtual como Half Life, ou Doom.
Mas e a verdade?
Depois dessa comparação com os gibis, como falar em verossimilhança no Tropa de Elite? Este é o ponto mais complicado do filme, pois ele trata de fatos reais. Esqueçamos o mito das HQs. No filme vemos algo que acontece ao nosso lado. Zé Padilha, inclusive, ganha fama como diretor em um documentário, Ônibus 174. Em entrevista na Uol cita ser amigo dos Irmãos Maysles[1]. Do cinema direto, à propósito, Wiseman, com seu filme Law and Order (1969), poderia servir como referência a Padilha. Nele Wiseman, sempre ácido no que diz respeito às instituições do Estado, mostra policiais em seu cotidiano de trabalho: na captura de infratores negros. Aqui não é diferente essa “verdade” captada. Nesse primeiro longa de ficção de Padilha não há capturados, mas os perseguidos e assassinados são sempre mestiços de periferia. O lado branco, bem vestido e burguês é o lado defendido. Inclusive pelo PM negro, André Matias, vivido pelo estreante André Ramiro – o personagem mais complexo da trama. Sua crise existencial não é pela constituição melodramática da família, como em Nascimento, mas sim entre o poder judiciário e o poder da força. Acaba escolhendo o mais catártico para ele e para as platéias – sair dando tiros e torturando meliantes com o uniforme da tropa contra seus quase-semelhantes da favela e da universidade.
Percebam: a maior diferença entre os heróis nos quadrinhos e os heróis em Tropa é que os primeiros salvam o mundo por conta própria. No realismo do filme de herói brasileiro, as coisas não foram por esse lado. Porque quem mantém a ordem por aqui é a polícia, o Estado. A trama perderia em verossimilhança e atrativos sem o Estado atuando – se Matias largasse a polícia e virasse advogado. Um exemplo: Antônio das Mortes, não significa mais nada hoje em seu dilema do “a quem eu sirvo?”. No Brasil de hoje, do filme, pra ser salvador do mundo é necessário, e unicamente necessário, vestir uma farda do Estado – uma parecida, até, com aquelas do exército que certo dia fez um golpe em prol da “segurança nacional”. Nosso caso atual é de um conservadorismo que, portanto, fica devendo até para gibis norte-americanos.
Apaziguador de ânimos
Nessa atmosfera atual de discussões o filme foi pirateado e visto por, segundo dados aproximados, 20 milhões de brasileiros. Absurdo. Não confie nesses dados, mas não deixe de levar em conta que falam isso. Histórias que o clima de filmagem teria sido muito tenso, que o ator principal teria quebrado o nariz de um instrutor da Elite e que o orçamento teria dobrado de 5 para 10 milhões de reais do início das filmagens ao fim dão ao filme uma aura densa, violenta e complicada. Arnaldo Bloch, jornalista, qualifica, então, o filme de fascista. Wagner Moura se retrata num artigo, dizendo que o filme abre a discussão com uma provocação. Cita o sargento Pimentel como um dos primeiros na polícia a defender a legalização do consumo de drogas para solucionar o problema do tráfico e da violência. Já em entrevista ao Jô Soares, Padilha também afirma ser a favor da legalização das drogas, assim como o Jô.
Só que esse problema não foi explorado pelo filme. Aliás, o explorado pelo filme é apenas o senso comum do "traficante bom é traficante morto", ou do "maconheiro é tudo conivente", o que parece ser uma boa estratégia comercial. Segundo o diretor, a obra é “um espelho da realidade”. Nessa isenção, ou abstenção feita por razões estéticas vemos platéias se regozijando de felicidade ao ver a truculência dos heróis. É neste ponto que o discurso de realismo do diretor perde em vigor. Se todos os diretores realizassem ótimos filmes comerciais, como o Tropa de Elite, com a visão da “realidade”, teríamos um Estado sempre fortalecido em seu monopólio da violência, truculento e torturador, com o legado do escravismo e das ditaduras que aqui se instalaram.
Alguém tem que dizer pra Padilha que a arte cria, sempre, mesmo sem o autor ter essa intenção. E que, quem sabe, é preciso muita imaginação, não um “realismo unilateral”, pra que a realidade mude de figuração. A realidade no cinema serve como matéria prima artística, e não como algo pronto a ser jogado para a degustação das massas. Essa polêmica da falsa neutralidade pode dar em nada, a não ser numa boa grana pra quem fez o filme e a continuação de tudo o que é e sempre foi - algo que costumam chamar de instinto conservador. Mas não sejamos ácidos demais, afinal, a intenção surte resultados nas entrevistas dadas pelo diretor à imprensa, muito bem preparado em suas argumentações.
Em suma, o filme é uma obra bem fechada, e bem estruturada narrativamente. Até impressiona, neste sentido, como acontece com Cidade de Deus. Mas o seu discurso parece ser completamente diferente do que vem dizendo o diretor
[1]Inventores, junto a Robert Drew, do cinema direto (Direct Cinema) – documentário com estilo propriamente norte-americano.
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