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Chris Marker, entrevista feita para globo on line

Entrevista Com Chris Marker

Na mostra de fotos da galeria Peter Blum, está disponível uma cópia de uma dessas raríssimas entrevistas de Chris Marker, feita por email por Samuel Douhaire e Annick Rivoire, para o jornal Liberation, em 2003:

LIBERATION: Cinema, fotonovela, CD-Rom, instalação de vídeo... Existe algum meio que você não experimentou?

MARKER: Sim, gouache.

LIBERATION: Por que você concordou que apenas alguns de seus filmes fossem lançados em DVD e como fez a escolha?

MARKER: Vinte anos separam “La Jetée” de “Sans soleil”. E outros vinte anos separam “Sans Soleil” de hoje. Nestas circunstâncias, se eu fosse falar em nome da pessoa que fez esses filmes, não seria uma entrevista, mas um debate. Eunão acho que escolhi ou aceitei: alguém falou em fazer e foi feito. Eu já sabia que há certa correspondência entre esses dois filmes, “La Jetée” e “Sans soleil” e não precisava explicar isto. Até que eu encontrei uma nota anônima sobre meus filmes, publicada num programa em Tóquio, que dizia: “Breve a viagem terá um fim. E então nós vamos saber se a justaposição de imagens faz algum sentido. Vamos entender que rezamos com um filme como quem está numa peregrinação, a cada vez estamos novamente diante da morte: no cemitério de gatos, diante de uma girafa morta, ao lado de kamikazes no momento do salto, em frente a guerrilheiros mortos em combate. Em “La Jetée”, o experimento com o futuro termina com a morte. Ao tratar do mesmo tema, vinte anos depois, Marker supera a morte com a oração”. Quando li isso, escrito por alguém que eu não conheço, que não sabia como fiz aqueles filmes, senti uma emoção e percebi que “alguma coisa” havia, afinal, acontecido.


LIBERATION: No CD-Rom “Immemory”, lançado em 1999, você disse que havia encontrado um meio ideal para o seu trabalho. O que você acha do DVD?

MARKER: No CD-Rom, o importante não é a tecnologia e sim a arquitetura, em forma de árvore, na qual de um mesmo caule saem vários galhos, várias possibilidades diferentes de jogo. Vamos agora fazer DVD-Roms. A tecnologia do DVD é soberba, mas nem sempre é cinema. Godard definiu de uma vez por todas: no cinema, você levanta os olhos para a tela; na televisão, você baixa os olhos para o monitor. E ainda há a questão do projetor: as duas horas de uma sessão de cinema são passadas no escuro. É a porção noturna que fica junto a nós, que fixa a memória de um filme de um modo bem diferente de um filme filme num monitor de TV ou de computador. E vamos ser honestos: é bem diferente. Assite outro dia “Um americano em Paris” na tela do meu iBook e quase redescobri a luz que eu havia sentido em Londres, em 1952, quando estava filmando com Alain Resnais e Ghislain Cloquet “Les statues meurent aussi”... Nós começávamos a filmar todos os dias, depois de ver a sessão matinal, das 10h, de “Um americano em Paris” num cinema da Leiscester Square. Eu achei que havia perdido aquela luz para sempre, taé que revi o filme no computador.


LIBERATION: A democratização dos meios de filmagem (DV, edição digital, distribuição via internet) seduz um cineasta socialmente engajado como você?


MARKER: Esta é uma boa oportunidade para eu me livrar deste rótulo. Muita gente acha que “engajado” significa “político”, e a política, a arte do compromisso (que é o que deveria ser porque se não há compromisso, existe apenas a força bruta, da qual temos tantos exemplos atualmente), me entedia profundamente. O que me interessa é a história. A política me interessa apenas na medida que carrega a marca da história no presente. Com uma curiosidade obsessiva (que eu identifico com alguns dos personagens de Kipling, com o Elephant-boy de “Just-so stories”, por sua curiosidade insaciável), eu continuo a perguntar: como as pessoas conseguem viver neste mundo? E vem daí a minha mania, de ver como as coisas são neste lugar ou naquele. Por muito tempo, aqueles que eram melhor posicionados para “ver o que estava acontecendo”, não tinham acesso aos meios para dar formas às suas percepções, e a percepção sem forma é enfadonha. Agora, de súbito, esses meios estão acessíveis. Para gente como eu, é um sonho que se tornou realidade. Escrevi sobre isto num folheto que saiu no DVD do meu filme. Uma cautela necessária: a democratização dos meios ainda carrega constrangimentos financeiros e técnicos, e não nos desobriga da necessidade do trabalho.Comprar uma câmera de DV não confere a alguém, magicamente, o talento para fazer filmes que ele não tenha, nem fazer desaparecer a preguiça daqueles que não querem se interrogar para saber se esse talento existe ou não em si mesmos. Você pode miniaturizar o quanto quiser o equipamento, mas fazer um filme existe muito trabalho e uma boa razão para fazer isto. Esta é a história de cineastas, como os que se juntaram no grupo Medvedkin, jovens operários que, no período pós-68, tentaram fazer filmes sobre suas vidas, e que tentaram alcançar algum recurso técnico, com os meios que dispunham na época.Como eles reclamavam: “A gente chega em casa depois do trabalho e você ainda nos pede para trabalhar mais!” Mas eles perseveraram e você deve reconhecer que algo aconteceu ali, porque 30 anos depois nós os vemos apresentar seus filmes no Festival de Belfort,diante de uma platéia muito atenta. Os meios disponíveis na época eram o filme 16mm mudo, o que representava três minutos de rolo de filme, um laboratório, uma mesa de edição, alguma forma de adicionar o som na edição, tudo o que você tem hoje dentro de uma pequena caixa do tamanho da palma da mão. Eles deram uma lição de modéstia para os jovens de hoje, que disperdiçam recursos, assim como os jovens daquela época aprenderam sua lição ao se juntarem num grupo sob inspiração de Alexander Ivanovitch Medvedkin e seu cinema-trem. Medvedkin foi o cineasta russo que, com os meios do seu tempo (filme 35mm, laboratório, mesa de edição, tudo instalado num trem) saiu filmando nas locações mais diversas, levando os filmes aos lugares mais distantes. Medvedkin inventou em 1936 a televisão: filmava durante o dia, revelava e editava de noite, e passava no dia seguinte para as pessoas que ele havia filmado (e que muitas vezes participavam da edição). Acho que isto é fabuloso e ele não foi sequer mencionado na "História do cinema", escrita por George Sadoul, livro considerado naquela época a “bíblia do cinema soviético”. Os trabalhadores que eu filmei na Rodésia em 1967 eram bem parecidos aos kossovares que eu filmei em 2000: nunca tinham visto televisão. Para minha surpresa, certa vez estava explicando a edição de "Encouraçado Potemkim" para um grupo de aspirantes de cineastas na Guiné-Bissau, usando velhos rolos de filmagem. Agora, aqueles cineastas estão tendo filmes selecionados para o Festival de Veneza. Fiquei impressionado com um musical de Flora Gomes. Achei a síndrome de Medvedkin outra vez num campo de refugiados da Bósnia em 1993,um grupo de garotos que havia aprendido técnicas de TV pirateando transmissões por satélite e usando equipamentos antigos emprestados por ONGs. E eles não haviam copiado a linguagem dominante: eles usaram aqueles recursos para ganhar credibilidade e produzir notícias para outros refugiados. Uma experiência exemplar. Eles tinham as ferramentas e tinham a necessidade. Ambos são indispensáveis.

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