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Moscou de Eduardo Coutinho (2009)

Coutinho deixou, realmente, a velha procura por um documentário popular. E o que o fez deixar, só ele pode explicar. A vertente que permeia sua tentação cinematográfica atual é a de um filme em que não haja mais uma divisão cerrada entre o verdadeiro e o mentiroso, e, numa espetacularização própria do contemporâneo, a não problematização do verídico. Assim, ele parece voltar ao seu primeiro modo criativo, que era sim a ficção, e era sim a narração cinematográfica.

Se em seus documentários anteriores a regra era a demonstração de um imaginário de costumes do povo, desde sua investida etnográfica, ou mesmo curiosa a respeito das classes mais baixas do país, o que na era da militância do PCB se chamava proletariado, o lado escolhido agora é o da investigação da cena. Vejamos Jogo de Cena, e percebamos isso.

Mas não só da cena por si – afinal é uma investigação, e, nestes casos, nada fica em si. Como se vê em outros textos aqui pela internet, Coutinho procura descobrir alguns mistérios da memória - do passado. O principal movente e criativo, e a principal fonte de vida pra um trabalho como a montagem de uma peça russa pré-revolucionária de Tchekóv – As três irmãs. – Muito se sabe, mas pouco se fala da confluência de ideais e de costumes entre a Rússia pré-revolução e o Brasil. Mas a diferença fundamental é a falta de utopia revolucionária por aqui, hoje.

Mas nem sempre foi assim. E mesmo Coutinho, que participou ativamente de uma militância desde a década de 60, é um personagem próprio desse passado quase revolucionário (e que moda era essa revolução entre os jovens da década de 60). O mais engraçado de Moscou é que Coutinho só apresenta o filme, e narra na moldura. Ele some. Não é diretor da mise en scéne. Ainda que, continua sendo o exímio montador de sempre.

É o filme mais experimental, e, sobretudo, o mais fragmentado do cineasta. Ainda bem que chamamos hoje Coutinho de cineasta, e não de documentarista – é essa a razão principal desse filme que junta, com muita força, o modo narrativo ficcional, atualmente muito pobre no país, e o documental, muito bem elaborado por alguns poucos cineastas, por outro lado. E, se o caso é lembrar, vejamos a trajetória do documentarista e levemos em conta sua decepção e melancolia com a atualidade sem perspectivas de um país subdesenvolvido, mas feliz.

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