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OS DOIS BRASIS - de Gianni Amico

Glauber - Leon. Leon - Glauber. Para mim, sobretudo, dois amigos. Daqueles de quem a gente traz os filhos sobre os joelhos, daqueles que trazem sobre os joelhos os filhos da gente.
Raramente escrevo sobre cinema. Faço-o quase exclusivamente para apresentar meus novos filmes, coisa, por si, já rara. As duas últimas vezes o fiz justamente para escrever sobre Glauber e Leon. Dentro da emoção pela morte de ambos.

Glauber e Leon foram - é impossivel não recordar - dois dos quatro irmãos com que privei mo transcorrer de poucos amos, poucos meses. Os outros dois foram Arges Ristum "Il Turco"e Enzo Ungari. O Turco era exilado em Roma mos amos setenta, porta-bandeira da colônia brasileira da época. Ai conheceu Glauber e Leon, tendo trabalhado com ambos. Com seu inato camaleonismo, com sua atávica soturnidade, foi capaz de integrar-se a um e ao outro, conseguindo "traduzi-los". Por Glauber, Enzo viveu uma de suas inflamadas paixões intelectuais; com Leon teceu uma verdadeira amizade; com o Turco se embriagava sempre. Juntos, em Veneza, Enzo (na Mostra) e Turco (como promotor), haviam vivido, em 81, a catástrofe em A IDADE DA TERRA e, em 82, o triunfo de Leon, em ELES NÃO USAM BLACK TIE.

OS DOIS BRASIS é uma saga de Jacques Lambert, considerada um clássico. Uma das primeiras tentativas de ler o Brasil, através de suas contradições de país rico-pobre, moderno-arcaico, urbano-desértico. Não recordo quem, talvez o próprio Glauber, talvez Paulo Cezar Saraceni ou Carlos "Cará Diegues", colocou o livro nas minhas mãos, estrangeiro que, no inicio dos anos sessenta, ia freqüentemente ao Rio com a intenção de compreender. Este livro fundamental voltou-me à mente quando os responsáveis por Sorrento tiveram a sensibilidade de pedir-me estas linhas.

Glauber - Leon. Dificil imaginar dois homens tão diferentes. O primeiro veio dos campos, do coração profundo da Bahia, daquela Vitória da Conquista que - ele dizia com certo orgulho - ostentou por anos o mais alto índice de criminalidade do Brasil. Só delitos de honra. O segundo lugar pertencia à metrópole, da zona norte do Rio de Janeiro, cinturão entre cidade e pré-história, que viu formar o proletariado carioca. Num país dividido entre o catolicismo e a tradição africana - o primeiro de origem protestante e o segundo, da família hebreu-polaca. Ambos cresceram entre o atabaque e o tamborim, os tambores do candomblé e do samba. Entre os cabelos loiros e a pele dourada de Glauber, pairava toda a gama de cores do Brasil. Não me consta que Glauber - que conseguia brigar com todos - tenha, alguma vez, se indisposto com Leon. Entre os dois, havia um respeito absoluto. Até se temiam.

Antes de conhecê-los pessoalmente, conheci-os através das maravilhosas fotos (precisas nas descrições físicas das pessoas, agudas ao registrar a essência do caráter, sempre pleno de humor) feitas por Gustavo Dahl, então estudante do Centro Experimental de Cinematografia.

Pessoalmente, conheci Glauber durante o Sestri Levante, em 1962, por ocasião da resenha de Cinema Latinoamericano, de que então me ocupava. Tinha 23 anos, e sob os braços as pizzas do Barravento, que ele levava a Karlovy Vary. Sobre nosso primeiro encontro já escrevi. Aqui, apenas quero ressaltar que Glauber monopolizou as atenções do festival, atirando sobre a assembléia dos cineastas latinoamericanos uma torrente de idéias e iniciativas, propondo uma estratégia continental para o cinema da América do Sul. Um autêntico terremoto cultural.

Depois, recordo-me dele, em Carnes em 64. Entusiasta, exaltado. Compartilhava com Luís Carlos Barreto e Nelson Pereira dos Santos a felicidade de haver finalmente, atraído a atenção do mundo sobre o cinema brasileiro. Em Porretta Terme, poucos meses depois, venceu o Festival com DEUS E O DIABO. Cesare Zavattini, presidente do juri, argumentou: "Finalmente um filme de pau duro". Uma noite, em Porretta, descobri que ele se achava sob as bordas do Monte Castelo, mítico palco da única batalha travada entre o corpo da expedição brasileira, integrado aos aliados, e o exército alemão. Teve um choque. Na manhã seguinte, fomos recuperá-lo na estação dos soldados. À noite, com Paolo Brunatto, arriamos ao longo da alameda as bandeiras dos países participantes do Festival.

E ainda, em Gênova, no início de 65, quando a Embaixada do Brasil em Roma queria anular a primeira retrospectiva do Cinema Novo, coordenada por Arnaldo Carrilho, antes do golpe acontecido nesse ínterim.

Na véspera da manifestação, chegou de Roma em coronel encarregado de ver todos os filmes. Recordo-me de uma projeção - no cinema do Arecco. Glauber sentou-se junto ao coronel, colou a boca na orelha dele e falou, ininterruptamente, durante toda a projeção. O coronel partiu à noite, autorizando a manifestação e afirmando que se tratava de filmes que honravam o país que os havia produzido. Logo depois, durante a reunião, Glauber apresentou para uma platéia de intelectuais a sua ESTÉTICA DA FOME.

Em Roma, viu pela primeira vez a neve. Passou o dia inteiro na Vila Borghese e quando voltou para casa, minha sogra teve que enxugá-lo de depois envolvê-lo nas cobertas como uma criança. Dai em diante, passamos muito tempo juntos.

Com ele, vi pela primeira vez, TV a cor. Itália - Brasil, final do México-70. O televisor era de Pierre Kast. Excetuando Pierre e eu, todos os outros expectadores eram brasileiros. Glauber, Fernanda, Nara, Cacá, David, se bem me recordo, e outros entre tantos que haviam escolhido, àquela época, Paris. Depois da euforia do 4 x 1, nas mesas do bistrot sob a casa, Glauber foi colhido por uma violenta saudade da terra (os brasileiros, sobretudo no exterior, chamam o Brasil de "Terra") que contagiou rapidamente toda a turma. De repente, cessou o vai-e-vém das cervejas, a frenética gritaria. O grupo de festivos se transformou em um grupo de desesperados. Uma imagem do Samba de Orly, a obra-prima de Chico Buarque, dedicada aos exilados brasileiros em Paris nos anos da ditadura.

Recordo o loft sobre a Bowery nos inícios dos anos setenta. Glauber o percorria, desnorteado, passando com impressionante rapidez da depressão à exaltação. Havia planejado uma estratégia de ataque à vida cultural nova- yorkina, com a assistência de Fabiano Canosa, encarregado das relações públicas, e Naná Vasconcelos, diretor musical. Creio que tenha sido em uma dessas casas de Manhattan, onde na época se viveu mais intensamente. Deveria haver vestígios em um vídeo, um dos primeiros, de Afonso Beato.

Morar com ele era um compromisso. De manhã, tomava banho enquanto outro escovava os dentes, porque ele queria falar de um texto de Eisenstein que havia relido (ou sonhado) durante a noite; os almoços quase sempre viravam comício; à noite, acordava alguém para falar do filme que havia visto. Era desordenado, caótico, barulhento. As casas adaptavam-se, inevitavelmente, ao seu ritmo que era o mesmo de um samba-rock.

Em 78, foi muito emocionante nosso reencontro no Rio. A última noite, no Brasil, passamos na casa em Botafogo vendo alguns números de ABERTURA, seu programa na TV. São imagens que trago ainda nos olhos. Glauber usava a televisão para arranhar a realidade, tinha a capacidade de levar os entrevistados a revelar-se, em tal medida e em tal modo que tomava aqueles trechos inesquecíveis na minha memória. Fiquei com a impressão de haver, naqueles poucos minutos, aprendido muito, muitíssimo mais sobre a "Terra" do que Glauber já me havia ensinado; e me ficou, ainda, o desejo de que qualquer um, vencidas a preguiça e a pobreza, se decida finalmente a editar, para mostrá-lo ao mundo, este superGlauber.

A última vez o vi em Roma, depois de ter estado em Veneza. Estava cansado. Passamos muito tempo jogando com Ava e Amaque, seus filhos menores. Ficava atônito diante da reação a seu último filme: hostil, na Europa; indiferente, na "Terra". Havia perseguido, por anos, o projeto de A IDADE DA TERRA, convencido de que realizaria um filme-manifesto de um novo Cinema Novo, não só brasileiro, mas de toda a América. Quando, finalmente, conseguiu articular seu discurso numa obra que exprimia toda a ambição, sentiu que não era ouvido, ou pior, ainda, mal interpretado. O seu discurso de líder de um cinema e de uma cultura, como referência para uma geração de cineastas latinoamericanos, havia se transformado, de repente, numa pregação no deserto.

Imediatamente após sua morte, escrevi sobre ele, para reinvindicar a absoluta coerência de seu trabalho, a clara lógica interna de seu discurso, em confronto a quem pretendia descrever as contradições e as incertezas da nossa cultura homogeneizada. Hoje me parece ainda mais evidente que relacionar Glauber a uma das posições político-culturais reconhecidas é uma operação que não tem sentido.

Glauber se movia como um missionário, sua missão era o Brasil. As armas da revolução eram seus filmes do Cinema Novo. Glauber vivia a responsabilidade do Brasil como uma obsessão. Dava a impressão de estar carregando sobre as costas o peso do pais. O seu Brasil, que não coincidia com o geográfico, mas tinha, antes, os limites da nação nordestina, de que ouvi falar, um dia, em Paris desde Luiz Gonzaga. Havia estacionado a câmera no ventre esfomeado e não trocou mais de ângulo. Havia personificado o DIABO no imperialismo vestindo-o de dragão da maldade, de monstro das sete cabeças. "Na barriga da miséria eu nasci brasileiro"(um verso de Chico Buarque, cantado por Caetano Veloso).

Interessava-se por todas as teorias políticas. Interessavam-no na exata medida em que vislumbrava uma idéia, uma contribuição aplicável ao processo de liberação de seu povo.

Eu visitava-o sempre quando militante na clandestinidade, com o nome de "Severino". Acompanhei-o nos seus diálogos com os generais. Defronte a um país do qual sublinhava a evidência do surrealismo (aquele trágico de Bunuel, que Glauber adorava) no cotidiano, parecia sempre convencido de que somente a lógica da magia, a cientificidade do sonho, a vontade da utopia poderiam fornecer-lhe respostas adequadas. Este era Glauber, e assim era fé cega, faca amolada, como cantavam Milton Nascimento, os eternos baianos, Maria Bethânia, Gal Costa, Gilberto Gil e Caetano Veloso. De Roma parte para hibernar em Sintra, lugar mítico da cultura lusitana, como um novo e eterno argonauta. Onde estava Glauber, estava o cinema. Ilospedou-se, de fato, no hotel onde Wenders rodava LO STATO DELLE COSE. Notícias dele eu obtinha indiretamente. Quando soube que ele estava doente, já havia morado.

Leon chegou depois. Rio, 1967. Rodávamos contemporaneamente cenas de carnaval. Ele para GAROTA DE IPANEMA, eu para AM! VEM O SAMBA. Ambos tínhamos poucas lâmpadas, insuficientes para o total. Aranovich e Pelloni, os dois iluminadores, estavam desesperados. Decidiram juntar as luzes à disposição e rodar, numa noite, um dos filmes, e na noite seguinte, o outro. Conheci Leon no set, na noite em que ele deveria filmar.

Dele eu conhecia MAIORIA ABSOLUTA, filme super clandestino. Já o tinha visto em Gênova, na retrospectiva de 65, único filme que Glauber não havia tido a coragem de mostrar ao coronel 'censor; mas, logo depois, padre Arpa, responsável pela manifestação, tirou-o do seu chapéu de 'prestidigitador, no momento da cerimônia de premiação e na presença de todos os embaixadores latinoamericanos. Foi triunfal, com Saldanha, único presente entre os realizadores do filme, alçado do palco pelos outros cineastas. E foi um grande escândalo político: as Resenhas do Cinema Latinoamericano nunca mais foram organizadas.

Nos encontramos e nos tornamos amigos, em Pesaro,em 68. Foi um dos primeiros brasileiros a ver TRÓPICOS. Eu esperava, nervosíssimo, sua reação ao meu filme, que, entre outras, continha uma citação do seu MAIORIA (três enquadraturas de Brasília, do alto). Depois, com Paulo César, em um quarto do Piccolo Hotel, ficamos conversando até a madrugada, enquanto no banho, Julinho Bressane havia se fantasiado de papai noel com o creme de barbear.

Até a metade dos anos 70, Leon rodou para a RAI um documentário sobre a cultura brasileira e permaneceu em Roma, muitos meses, para montá-lo. Sempre que podia, ia nos encontrar em Cinque Terre. Duas sequências de DIÁRIO DI MANAROLA foram rodadas por ele. Lembro-me de nós dois, comovidos, após as primeiras projeções, quase contemporâneas a SÃO BERNARDO e AFINIDADES ELETIVAS. Lembro-me dele, emocionadíssímo, em Veneza, na estréia de BLACK TIE, chorando nos braços de Guarnieri, este ainda mais emocionado, perante o público que não parava de aplaudir. Lembro-me também de quando ele deu uma cantada na Liv Ulmann, roubada da telecâmera, no momento da premiação. Lembro-me dele, no ano seguinte, no júri com Bernardo Bertolucci, premiando Godard.

Na semana anterior, havíamos trabalhado juntos na filmagem de um filme sobre o samba da Bahia, desde então, interrompido. Quando nos falamos, pela última vez, sonhando um dia, poder concluí-lo, ele adorou a idéia de poder intitulá-lo GLAUBERALIA. De fato, a aventura-desventura do filme sobre samba muito nos tinha unido, nos últimos tempos. Em Roma, ele morava comigo. No Rio, eu morava um pouco com ele, um pouco com Gustavo Dahl. Eu provava da estranha sensação de ser o único contato entre os dois.

Como hóspede, Leon era ordenado, discreto, silencioso, reservado. A hora das refeições e das sestas eram sagradas. Com ele vivia-se ao ritmo de um choro, a forma clássica da canção popular brasileira. Era comunista. Era-o de modo rigoroso, responsável, atento, quase burocrático, da forma que consenguem sê-lo só os comunistas.

Nos últimos tempos, estava sempre mais envolvido com IMAGENS DO INCONSCIENTE. É muito fácil, hoje, perceber como Leon viveu o seu último filme como uma experiência totalizante, assim como Glauber, havia vivido A IDADE DA TERRA.

Estava convencido de ter entrevisto, durante a montagem de IMAGENS, o fio de uma lógica profunda, de uma nova articulação estrutural capaz de fazer coincidir o peso do social com a penetração nas profundezas do indivíduo, isto contado como energia criadora de paixões (esta era sua palavra preferida). E foi surpreendente, quando terminou o filme, a sua vontade de fazê-lo circular fora dos circuitos normais, quase como se tratasse de uma criatura carente de atenções e olhares especiais: embrião daquilo que parecia delinear-se, em Leon, como um repensamento das reflexões sobre a montagem que estavam na base da sua pesquisa teórica. Como Glauber, era obsecado pela necessidade de alçar a ambição do discurso, de aumentar a qualidade e a amplitude da proposta cultural. Durante a minha última viagem ao Rio, ele já começara a ficar doente. Depois, falávamos, por telefone longamente, até quando foi possível.

Glauber - Leon. Diferentes, os dois homens, differentissimo o cinema de cada um. Glauber, hoje, me parece definir-se como a expressão barroco-tropicalista daquela linha de cultura brasileira (metropolitana, cosmopolita, experimental, orgulhosa da própria cultura ao ponto de querer reinventara a lingua) que vem do modernismo. Leon, com seus teoremas sobre as pulsões do social e do privado, como artista um pouco neoclássico e um pouco nordestino. OS DOIS BRASIS se cruzam, talvez se encontram.

As horas passadas conversando, discutindo, brigando com eles estão entre os grande prazeres da minha vida. Eram dois grandes faladores, fascinantes, surpreendentes, sempre prontos a enriquecer o assunto com pontuações agudas, narrações plenas de sabores. Certa vez, em Roma, meados dos anos setenta, os três nos reencontramos. Falou-se durante o dia inteiro. Entre Glauber e Leon se estabelecia uma linha de idéias, de proposta, de reflexões. As mais audazes provocações de Leon encontravam Glauber pronto a apoiar o golpe e a relançá-lo; os desenhos planetários de Glauber eram reconduzidos por Leon como hipótese de trabalho. Os dois, de repente, começavam a assemelhar-se. Quando Glauber passava, como ele dizia, da dialética à dialética, encontrava Leon já sintonizado.

Bastava uma palavra, uma pergunta inocente, o pedido de uma informação para desencadear a oratória de ambos. Sobretudo se falavam da "Terra". Nesse momento, os dois se tornavam idênticos. No afeto com que falavam do Brasil, no orgulho com que reinvindicavam a originalidade de sua cultura, na fé naquele que, nas palavras deles, já era "o país do futuro". Tornavam-se sectários ao defender tudo aquilo que a cultura brasileira, a deles, propunha. Não era necessário exprimir reservas, bastava uma dúvida para se tomar objeto de uma agressão que os via recorrer a todas as flechas do arco dialético de ambos. Os últimos encontros com Glauber aconteceram em Ipanema, no momento em que pedi notícias sobre a real diretriz das inovações introduzidas por Figueiredo, o presidente que havia encaminhado, ao fim dos anos setenta, o processo de democratização.

E com Leon, na casa de Copacabana, no momento em que cruzei os dedos falando do futuro do Plano Cruzado, o plano econômico criado pelo presidente Sarney em 1986. O inimigo para ambos era o mesmo. Aquilo que Glauber chamava de diabo, Leon chamava de câncer.

As palavras de Glauber e de Leon sobre a "Terra" deveriam ser registradas. Ainda que muito diferentes: iluministas e rigorosas as de Leon, enquanto que aquelas de Glauber tinham o estilo do padre Cícero (o líder religioso nordestino, no qual foi inspirado DEUS E O DIABO, e a quem, Leon, por sua vez, tinha dedicado um filme que preparara havia muito tempo), um discurso que, passando pelo delírio, dissolvia-se na profecia. A prova da existência de um Brasil moderno e capaz de organizar a própria potencialidade está no cinema de Glauber e Leon. Ou melhor, no Cinema Novo, para ambos sinônimo de "cinema brasileiro". Exemplo concreto da possibilidade e da capacidade de criar obras sem complexo de inferioridade cultural, dedicadas ao subdesenvolvimento mas não subdesenvolvidas, provenientes da provinciano mundo para não propor um discurso provinciano, mas sim para afirmar a centralidade da província. Glauber ficava contente quando eu falava de Milagres (uma cidadezinha de 500 almas no interior da Bahia, onde não só por coincidência foi filmado OS FUZIS, a parte central de TRÓPICOS e O DRAGÃO DA MALDADE) como capital do globo em alternativa a Moscou ou Nova York. No fundo, dizia, o problema é só onde fincar o cavalete.

Ficou em mim a impressão de que, perplexos e preocupados com as vicissitudes do país e das nuvens que viam adensar-se sobre o cinema brasileiro, ambos consideravam seus últimos trabalhos como tentativas de abrir uma fase de maturidade que julgava indispensável para a sociedade e para o cinema brasileiro. Creio que somente a materialização do sonho de um Brasil capaz de apresentar-se íntegro e independente na sua cultura, em confronto com o mundo, possa dar um sentido ao trabalho e à existência deles.

O sertao vai virar mar.
O mar vai virar sertao.

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Mauro querido!

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