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O Anticristo (2009) - Lars Von Trier

No prefácio de “Para Além do Bem e do Mal”, livro do filósofo alemão Friederich Nietzsche, se vê uma rápida alegoria bem característica de sua escrita: “Suponhamos que a verdade seja uma mulher”. Assim toda a filosofia, na berlinda de uma racionalidade, seguiria essa bela moça que não se deixaria tão fácil ser cortejada. Precisaria ser desvelada.

Já na sua obra manifesto, bem ao modo do Manifesto do Partido Comunista, de Marx e Engels, “O Anticristo”, Nietzsche tenta subverter o cristianismo, acusando-o do niilismo que domina a Europa pré-crise imperialista das grandes guerras. O filósofo demonstra que uma nova interpretação da Grécia antiga, por conseguinte da filosofia antiga, poderia ser o ponto chave de uma inversão de valores (ou, na palavra que ganhou a tradução no Brasil, na transvaloração). A Ciência Gay, ou Gaia Ciência, uma epistemologia da ciência sob o ponto de vista da aura feminina; a genealogia de uma história da moral imperativa kantiana - e máscula; a oposição entre apolíneo forte e beligerante - e o feminino dionisíaco; toda a brincadeira desse ditirambo era uma tentativa clara de revisão do sujeito que manda no saber – o sujeito falocêntrico, já na linguagem psicanalítica, de um Deus Pai (e não mãe).

Continuando essa introdução, damos a volta na mesa de estudos e encaramos mais uma vez essa natureza que parece ser demoníaca. O filme de Lars Von Trier, que talvez chegue como sua tese principal, é, no cinema atual, um revigorante tanto de uma arte nas telas, mas também como um questionador dos parâmetros atuais de produção e tematização em obras. O que nos deixa abismado são observações vistas na internet como essa: "é um trabalho de alguém emocionalmente perturbado". Certamente, por esses meandros da tentativa de censura imposta pela democracia da “paz eterna”, manifestada em pequenas frases que atestariam loucura ao diretor dinamarquês, que ele talvez não tenha conseguido o prêmio em Cannes – e tenha, inclusive, suscitado vaias da platéia. Para alguns, inclusive pra mim, o filme é o ponto alto do diretor.

Não o ponto alto como o cume de sua produção. Sobretudo, como o mais profundo em tema e abrangência trágica. Se antes ainda existia o resquício melodramático, que faltaria a Theodor Dreyer, ou a Ibsen, em filmes como Os Idiotas, ou Dançando no Escuro (esse sim ganhador da palma de ouro), agora o filme do diretor parece ter a dimensão mítica necessária para criticar o maior Best Seller do mundo, quiçá do universo: A Bíblia. Ironias à parte, o Anticristo não é a primeira facada na tradição cristã vista no cinema. Defoe , inclusive, renasce como um Adão após sua vida sob o simbólico e humano Cristo de Scorsese.

O filme de Lars é uma tese, tal como da personagem feminina, a Eva Charlotte Gainsbourg, sobre o Gynocide – assassinato do feminino. Três capítulos, além do prelúdio e do prólogo, dão o sumário: Luto, Dor e Desespero. São três percalços da filosofia cínica dos tempos hedonistas, mas na profundidade trágica já citada, admitem um caráter autoreflexivo desse distanciamento político. O mesmo distanciamento faz a teoria de Brecht ainda ser ativa, pois vemos como espectadores a natureza nos comandar. Sendo que a polis atual, além de estar no espetáculo, é permeada por natureza caótica internamente e externamente, segundo uma vertente muito bem estudada por espinosistas. Portanto, ela está cheia de impulsos que a crítica mais racional deixaria passar direto.

Sim, passaria bem rápido.

Primeiro, porque a natureza é insignificante, e, segundo, quando não é, ela tem a força de um inconsciente místico que remontariam a bruxas, feitiçarias, ninfas e sereias que desviam o olhar distraído da razão. Ulisses (de Homero), o grande herói clássico, sabia tanto quanto Adão dessa força feminina, e por isso mandou sua tripulação tampar os ouvidos. Mas sabia também da sedução demoníaca e, quem sabe, cheia de sabedoria e conhecimento por trás dos cantos enigmáticos, e não tampou os seus.

Suponhamos que, realmente, a verdade seja uma mulher. Essa mulher que conhece mais que a figura masculina de um terapeuta, psicólogo, psicanalista (em suma, um cientista da alma moderna) sobre as forças da natureza. Essa mulher teria, portanto, essas forças a seu lado. No filme genial de Lars, o impulso depressivo provocado pelo suicídio de um filho da personagem feminina a liberta da prisão mítica masculina. Aquele filho era uma parte sua – a da tese racional e esquemática. Finalmente, levantamos aqui a hipótese de que uma tese pode ser comprovada naturalmente, sem maiores metodologias.

Se a natureza, ou a verdade, é uma mulher, então a racionalidade, o uso ad nauseum da inteligência e do intelecto é do homem. Enfim, quem constrói prédios são homens. Quem move aos braços o capitalismo material e fictício são os homens (levantando edifícios e gritando nas bolsas de valores). A arte, no fundo, é que vive das musas. E Eva, a parceira de Adão no Éden demoníaco, não era a virgem, mas a primeira sereia sedutora do herói, ou do nosso pai genético. Saímos agora do Gênesis para a floresta atual.

Nós vivemos aqui em um país onde a Natureza é constituinte de um imaginário feliz e festivo. Diferente da imaginação européia, que vê o verde como Triste (Levi-Strauss), ou como um Inferno. Nosso Éden ainda tem quês paradisíacos, não só por conta do carnaval e da prostituição de qualquer pessoa a euros ou dólares. Aqui ainda vivem povos originários desse território, que sabem mais dessa natureza que qualquer personagem feminina de uma Europa amedrontada e enfiada em castelos ou igrejas, monastérios e catedrais. A vida ao natural, aliás, foi ignorada, e ainda é ignorada pelos conferencistas da ordem mundial. Perde-se aquela força que se via em movimentos hippies, este que tentava mimetizar tanto os seres naturais Índicos, como os chamados Índios do novo mundo. Aliás, é essa a inversão Nietzscheana – uma que chega a ver a natureza como um destino feliz, muito longe de uma frieza rude bem vestida, e muito perto de uma latinidade composta pela cultura popular.

A vida, que não é vista no manifesto de Nietzsche, nem na obra política de Lars Von Trier, é um acovardamento diante do que se chamou muito tempo de demoníaco. Freud, aliás, está morto – e não se ouve isso nas esquinas de metrópoles e, ou , megalópoles. A natureza não pode ser Adão, que desemboca fatalmente no uso de uma racionalidade em vias de Auschwitz – extermínio racionalizado de etnias e seres inferiores. Essa Natureza culpa o instinto tanto quanto a liberdade e a ação deliberada por um destino imprevisível. Se a arte liberta o indivíduo de sua prisão racional, certamente O Anticristo, levando-se em conta a única maneira de se fazer tragédias naturais hoje que é no invólucro cristão, nos dá a deixa para discutirmos o que temos de mais interior e profundo.

Claro: além da dicotomia macho e fêmea, ou de um machismo e feminismo. Além do Bem e do Mal. E além do apolíneo e dionisíaco. A tese se confirma: matamos nosso ser mais estético, a árvore da sabedoria, mais... feminina.

Comentários

Anônimo disse…
O Lars Von Trier é um cristão. O seu artigo não faz sentido.
Anônimo disse…
Ola,

Notei no blog de vocês que estão falando do filme Anticristo da California Filmes.

Gostaria se possivel de algum contato para que possamos trabalhar sempre juntos.

Podemos fazer variadas parcerias promocionais. O que acham?

Atenciosamente

rodrigo@californiafilmes.com.br
Anônimo disse…
"Essa Natureza culpa o instinto tanto quanto a liberdade e a ação deliberada por um destino imprevisível"

Nem sei quanto tempo faz que não me arrependo por ter me dado o trabalho de ligar o computador e ler site, blog ou qualquer coisa assim. Pois esta foi uma leitura extremamente estimulante, pela qual desejo lhe agradecer. Apenas isso, por enquanto.
Anônimo disse…
Sai do cinema incapaz de definir o que tinha assistido. Só não poderia, como a definição do cinema propunha, classificá-lo apressadamente como um filme de terror. Seria antes, pensei, um filme sobre psicanálise e bruxaria. O que ainda é dizer pouco. Então, a única frase que repetia para mim mesmo era: "é preciso pensar Lars Von Trier". Este pensar teria que passar por um certo distanciamento do horror e mal-estar que o filme provoca. Isto não significa simplesmente conceitualizar as personagens abstraídas da sensação que as cenas provocam. O que seria, em última análise, dizer que o mesmo poderia ser dito sem um filme, ou seja, invalidar a potência do dizer estético. Enfim, seu texto me inaugura neste caminho de pensar o filme e meu trajeto não parece muito distante. Parece que o filme tenta mesmo contrapor as imagens do racional (psicanalítico, masculino, etc.) com uma verdade que não se pode chamar de irracional (como se fosse o avesso da outra), mas que possui outra matriz (mágica, mística, feminina). O problema é que esta ciência de gaia nos fere. Machuca a nossa moral. Enfim, deixo uma questão para sua interpretação do filme à luz de Nietzsche: acho que ele não admitiria uma ciência feminilizada, clamando sempre pela virilidade e potência do macho criador. Certamente este não é o tipo do marido psicanalista, mas será que o além-homem é o tipo da personagem de Gainsbourg?
Anônimo disse…
Foi a melhor resenha que eu li sobre esse filme.

J.
Sua resenha é tão genial quanto o filme e merece um contraponto de alguma pessoa especializada em psicanálise ou bruxaria.

Achei que o filme retrata um outro ponto pouco discutido a obsessão. Sempre se diz que ninguém alcança o que se busca pela obsessão, acho que é o filme mostra o que acontece quando se encontra.

A personagem encontra em si mesma a Lilith expulsa do Paraíso e mostra pro Adão que ele faz o que ela quer - mesmo que o que ela queira seja a própria morte e a danação dele.

O tempo todo a mulher rege cada uma das ações e o homem apenas a auxilia. Ela mente, distorce, percebe e corrompe... para que no final, demonstre que tentou ser boa desistindo da vida, mas ele não permitiu.

Um filme foda! heheheeh
Anônimo disse…
Desculpe a minha ignorância , mas o que o diretor queria dizer com a cena a qual aparece mãos saindo da raiz da arvore quando o casal estava no sexo. Outro questionamento é sobre o final onde se vê corpos nas raizes e pessoas indo em direção ao eden.
Que resenha... obrigada pela nutrição mental. Desejo compartilhar para quem interessar possa que haverá um debate científico de cunho psicanálitico, detalhes logo abaixo. Nos encontramos por lá.
Gisele Parreira
Psicanalista
parreiragisele@yahoo.com.br


GRUPO DE ESTUDOS PSICANALÍTICOS DE MINAS GERAIS (GEPMG)
Filiado à Federação Brasileira de Psicanálise (FEBRAPSI)
Componente da International Psychoanalytical Association (IPA)


REUNIÃO CIENTÍFICA ABERTA AO PÚBLICO

A Comissão Científica do GEPMG convida para a sua primeira reunião científica do ano.


Tema: "Sobre o Anticristo de Lars von Trier".

Apresentadores: Flávio José de Lima Neves (Psicanalista da SPRJ e GEPMG).
Sonia A. Penna (Psicanalista pela École Belge de Psychanalyse).



Data: 27 de fevereiro de 2010 – sábado.
Horário: de 10:00 às 12:30 horas.


Local: Auditório Spartacus.
Rua Ceará, 1431 – Funcionários
Belo Horizonte – MG


Valor: Profissionais: R$ 30,00
Estudantes e candidatos do GEPMG: R$ 25,00


Informações e inscrições:
Tel.: (31) 3224-5405 – de 11:00 às 17:00 horas
gepmg@uol.com.br – www.gepmg.org


Obs: É importante e recomendável que as pessoas tenham visto o filme antes da apresentação.
Luiz Ribeiro disse…
parabéns! Crítica precisa e pontual.

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