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Lula - Filho do Brasil - Fábio Barreto

Uma coisa, dentre várias, que o movimento do Cinema Novo da década de 60 ensinou às gerações posteriores, foi fazer filmes com o olhar de um estrangeiro que vê os temas do Brasil. Sendo assim, até aqueles milhares de estrangeiros que vivem no país, por “opção” ou por contingência, gostariam dos filmes que veriam nas telas de cinema daqui. Desde que se entende essa tabuada, se cria cinema com intenções industriais que devem ser levadas a sério.

Lula, Filho do Brasil, é filme necessário para estrangeiros, “estrangeiros”, e nativos. Filme que centra em personagem, diga-se de passagem, e segue esse herói até o fim nas regras clássicas, chega a ser regra nessa crença da industrialização do cinema. Não é preciso chamar a atenção pra isso, ou para uma publicidade infantil proporcionada conscientemente por quadros artísticos que não saíram da regra populista do primeiro Cinema Novo. Mas, sim, é preciso chamar a atenção para o fato que salta aos olhos dos mais inocentes – sem o personagem real, que tem proporções de mito hoje em dia, não existe o personagem na tela. Não por acaso há cenas reais, documentárias, no filme.

E esse mito vem pro bem, pro mal, e pra qualquer moral que se chame pedagógica. Luís Inácio, um torneiro mecânico messiânico, um migrante dentre milhões do norte do país que é gênio, um homem rude e amável, filho do campesinato e da periferia, do passado agrário que é presente, do suposto movimento revolucionário e grevista da década de 70 no ABC paulista, é forte como exemplo. É um trabalhador, daqueles que conseguem tirar qualquer marginal da criminalidade para tentar a vida como um “peão”, e é forte como insistência crítica, de um sagaz político que sabe a hora de se retrair para conseguir ganhos. Ensina à platéia mais desavisada e distraída que para chegar à presidência não foi fácil.

O filho do Brasil é como Os Dois filhos de Francisco – pequenos modelos de brasileiros “não estrangeiros” que conseguem ver que para melhorarem de situação é preciso muita devoção ao que se acredita. Auto-ajuda? Pode ser. Mas o adjetivo que mais satisfaz é complacência, pena. Uma tristeza que continua, e é usada, explorada pelo cinema “em vias de industrialização”, para ganhar votos, aliás, espectadores, audiência. Tirando o problema populista desse viés do “cinema industrialista”, chegamos ao fator não menos importante do perfeccionismo, do trabalho em grupo (afinal, trabalhador unido, jamais será vencido!), da “teimosia” em se criar esse cânon de personagem que consegue sair da miséria e ganhar a mídia. No caso de Lula, a mídia mundial. Por conseguinte, a audiência necessária para a ficção que está nas telas proposta pelo filme publicitário.

Enfim, o personagem compõe uma das linhas mais comoventes de nossa história do cinema, de Mazzaropi a Macunaíma, que é daquele rapaz ingênuo que sai do sertão, da favela, das palafitas, e consegue chegar, como em Bye Bye Brasil, à ilusão espetacular e sensacional, proporcionada pelo cinema. Lula está em vários documentários, que vão da época, como a trilogia ABC da Greve, Linha de Montagem, e A Greve, de Leon Hirzsman, Renato Tapajós e João Batista de Andrade, respectivamente. Ressurge em véspera de sua eleição para o cargo máximo do executivo em Peões, e Entreatos, do exímio documentarista Eduardo Coutinho, e de um dos discípulos inconscientes do movimento cinemanovista, João Moreira Salles.

A ordem desse personagem que é, às vezes, comparado a Jesus Cristo, é uma derivada da política – ou, se quisermos deixar a mesa mais cheia de argumentos, do gênero político do cinema brasileiro. No entanto, esse gênero é diluído por outras intenções contrárias volumosas...

Sem dúvidas, o melodrama “global” (da Rede Globo, ou da globalização) domina a trama dos filmes industrialistas atuais. O profissionalismo é linha de frente. A lição foi decorada, e todos lutam por prêmios e reconhecimento do Oscar. Aliás, só assim para sobreviver de cinema por aqui – tal como as prerrogativas do metiér da publicidade, que hegemoniza o audiovisual desde fins da década de 80, e fim da Embrafilme. Sendo assim, o dilema político havia se esvaído, deixando o cinema em comédias sem graça e com Xuxa (apresentadora loira de TV da emissora Rede Globo, outro mito do audiovisual). A dúvida que surge nesse retorno da política ao melodrama, atirando em Costa Gravas, ou na sobra que se vê em pequenas produções feitas pelo mundo (tal como alguns filmes dos hermanos peruanos, cubanos, ou argentinos – estes últimos chegaram a usar outra loira, esta da mídia americana, para compor uma personagem da política local, Evita), é evidente o despreparo no lido com essa temática tão espinhosa, para não dizer escorregadia, em obras artísticas. A política de Lula, aproveitando o ensejo, é adaptada a todo esse universo de câmeras e sabonetes molhados – e isso é percebido no Lula de mentira do filme.

Não vemos aquele Lula "antigo" e sem carisma, que tanto amedrontou as classes médias nas eleições de 1989. Uma espécie de louco, “sapo barbudo” (tal como um dia foi apelidado por Pedro Bial, o Big Brother contemporâneo), profeta extemporâneo. Vemos um rapaz que se apaixonou duas vezes, e subitamente foi visto, talvez por conta da ebulição de seu tempo, dentro de um sindicato. E se ergueu, como nome importante da política sindical, meio que “sem querer”. Subiu ao posto máximo da diretoria para renovação do movimento, e subverteu, praticamente sozinho, um cenário de paz da era tirana ditatorial. Óbvio que a realidade não teve esse teor, mas a fábula é a que fica.

A fábula de um nordestino que conquistou o mundo, agora pelo cinema, será contada no futuro como um conto de fadas bonitinho, melô, do jeito que alguém que desconhece as intempéries de nascer brasileiro em periferia quer ver. Melhor dizendo: do jeito que alguém fora da periferia “consegue” ver. Tirando sua capacidade de absorção, o filme reascende uma fagulha necessária na discussão cinematográfica, política, trabalhista de hoje. Ainda que, tal como em qualquer filme que procura bilheterias, de maneira sutil. Sombria, amendrontadora – ou feliz, esperançosa. Dependendo de sua postura e entendimento sobre o tema do populismo.

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