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Estilo diverso em É proibido fumar, de Anna Muylaert

Dentre as cineastas, esta se destaca imensamente. Não apenas por ter um manancial estilístico bem peculiar, daquela maneira que um cinema autoral demanda, mas por ter em seu currículo o filme Durval Discos (2002), além de alguns roteiros como do filme Desmundo (2002, Alain Fresnot), e O ano em que meus pais saíram de férias (2006, Cao Hamburger). Anna Muylaert é precisa em planos complexos, dentro de paredes e retângulos dos apertados condomínios de nossa vida de hoje.

Em todos estes filmes lembrados, Anna se destaca também, talvez principalmente, como escritora de roteiros inimagináveis. Ela supera o mediano do drama escolhido pelo audiovisual nacional, o simples e melô – ao jeito da Globo Filmes. É algo que beira o surreal a língua de Desmundo, como também é a entrada de um cavalo em cena fechada num quarto na segunda metade do filme Durval Discos. Andar pelas tangências do absurdo parecia ser sua promessa, até que vimos o realismo tomar a dianteira em seus últimos roteiros. O que ela não deixa de lado são os prolongamentos a respeito do que assistimos atualmente em nossa vida diante da TV – sem entrar em uma auto-reflexão muito estridente, muito crítica, radical.

Em É proibido fumar, obra premiada no engajado festival de Brasília, a mídia televisiva entra no cinema com caracteres bem distintos da normalidade. O filme soa estranho para quem vê Glória Pires em novelas. Em determinado momento do filme, inclusive, este assunto vem à tona: num diálogo entre Baby (personagem vivida por Glória) e sua irmã (interpretada por Marisa Orth), esta diz à protagonista para deixar de drama, e logo pergunta se ela anda vendo muita novela. Sim, duas atrizes famosas por novelas discutem sobre o drama novelesco exagerado... Uma fina ironia que se desmancha segundos após a discussão quando a até então “mansa” Baby, ou Glória Pires, xinga sua irmã com palavrões que nunca seriam exibidos na Globo – talvez nem neste jornal que você lê.

A escolha do par de Glória por Paulo Miklos, cantor, compositor e músico dos Titãs, também possui uma carga de ironia fina. Lembremos que Glória tem um marido músico – que certa vez já compôs uma trilha para a novela em que sua esposa trabalhava. No filme, Miklos faz, mais uma vez, papel dele mesmo. Um canastrão carismático, bem ao estilo malandro que por muito tempo o cinema tem deixado nos cantos do elenco. O par anda bem, já que Baby e Max (Paulo Miklos), não se apaixonam, nem entram no citado drama novelesco. Mesmo existindo, na história, um assassinato involuntário que dá o tom surreal sempre flertado por Anna.

E a diretora paulista gosta de discutir música. Gosta de mostrar, para os mais atentos e de ouvidos bem limpos, seu repertório sonoro. Durval era dono de uma loja de discos Long Play que é demolida pelo andar dos tempos modernos. Max é um amante do tropicalismo que acha Chico Buarque “meio devagar”. Para quem gosta dessa discussão, nada ultrapassada, Jorge Ben contra Chico realmente dá o que falar, visto que um dia este último recusou dar uma boa nota a um músico negro como Martinho da Vila em festival de TV. Pitty também faz uma ponta no filme, assim como o escritor Lourenço Mutarelli, André e Antônio Abujamra, Paulo César Peréio, e a inusitada ópera de Georges Bizet, Carmen, em meio ao trânsito da metrópole. Dissonância geradora de curiosidade – não só estranhamento.

A surpresa do filme é dar ao espectador do cinema brasileiro uma anotação do que se vem sendo produzido em São Paulo – um drama que chega ao absurdo. Ugo Giorgetti também faz dessa forma sua narrativa, e talvez seja uma referência para compararmos com Anna. Dá pra dizer, inclusive, que os produtos da Conspiração Filmes também andem por esse lado. Sem contar com o citado Fresnot, Lina Chamie, Ana Carolina. O diferencial são as citações ao modo de narrar europeu, que Anna, e só ela, parece gostar muito desde seu primeiro filme.

O filme ganhou o festival de Brasília, ganhou rápido as prateleiras de DVD, e merece uma atenção redobrada não só pela minucioso e precioso intimismo. Em geral, Muylaert é quem merece isso tudo.

Comentários

Rafa disse…
Que interessante o post que vocês colocaram, parece ser um filme bem interessante, vou ate dar uma olhada na programação da Cinemax , um dos canais da HBO, para ver se eles vão passar esse filme!

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