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Espíritos no cinema

Milhares de pagantes de uma indústria que se consolida aos trancos no Brasil

Certo dia um colega estudioso de cinema na Índia me explicou em parte o fenômeno da indústria de filmes em Bombaim, a Bollywood. Esta é, para os que desconhecem do fato, a primeira maior indústria de filmes em número de audiência do mundo. Ele dizia que além do drama familiar, a busca dos espectadores era por algumas narrativas que tocassem no tema da religiosidade hindu. São mais de 1 milhão de deuses, semideuses, ancestrais, no hinduísmo – personagens não faltam. Chegam, alguns das castas mais pobres do país, a jogar moedinhas para a tela e gritar nas salas, como num culto, num ritual, numa festa religiosa.

Bem, fato é que os realizadores atuais no Brasil tocam no tema do espiritismo em algumas obras. Tema que, aliás, merece maior atenção – e, com a permissão do jornal, voltarei a tocar com mais apuro posteriormente. Em 2008 um filme pretensioso em produção, do Ceará, consegue mais de 400 mil pagantes em salas de cinema: era o “Bezerra de Menezes – O diário de um espírito”. Neste ano de 2010, Daniel Filho lança a bomba “Chico Xavier – o filme”, que chegou à casa dos 600 mil espectadores. A novidade nos cinemas é “Nosso Lar”, que nas primeiras semanas já bateu o recorde de bilheterias de filmes brasileiros dos últimos 20 anos. Tudo em uma grande parceria entre a produtora Estação da Luz, Globo Filmes e 20th Century Fox.

São filmes que potencializam a seriedade das novas histórias épicas do imaginário mais bem arrumado e correto. Dentro de um mar de possibilidades, acham aquele do positivismo, tão mergulhado na cultura de uma burguesia antiga brasileira, o mais pragmático. Se o caráter dos filmes é o de elevar tudo o que, na história das narrativas brasileiras, nunca teve tanta austeridade, certos estamos que vemos imagens que desconhecíamos até então. Fora de qualquer experimentalismo, a espiritualidade, ou espiritismo dos filmes tem um intuito fortemente “civilizador” – pelo menos está longe do pandemônio bárbaro das favelas, periferias, das culturas afro e, ou, indígenas, imaginários tão combatentes em alguns filmes mais conscientes da desigualdade de costumes, hábitos, moradia, salários, que é condição do país. Parece que o bom, belo e verdadeiro está por trás mais uma vez de uma nova Vera Cruz – indústria caipira de filmes entediantes em sua beleza fora de forma.

O espiritismo, aliás, tem fama científica. Não só pela influência exercida por Alan Kardec. Tem em sua essência a transcendência – uma fenomenologia francesa, carregada de deslocamentos e análises que dialogavam com um estruturalismo. Claude Levi-Straus que nos contradiga, pois seu estruturalismo é o de uma base etnográfica – inclusive brasileira. Mas nada tem a religião a ver com ciência, pelo menos num a priori. A pergunta que vem agora, nesses tempos de re-industrialização da cultura com potências neo-desenvolvimentistas: o cinema tem algo a ver com a religião? O que não teria...

No Brasil o ideal de civilização pode ser visto em Nosso Lar. Efeitos especiais criaram uma Atlântida, utopia das metrópoles e colônias. Um lar europeizado, ainda que as roupas pareçam com uma indumentária grega antiga, mais impregnada de um iluminismo (a ver o nome da produtora, e dos espíritos que clamam pela iluminação) do que das trevas de um Hades à la Fellini. Hitchcock então, que seja execrado no seu suspense moderno. As regras do jogo cinematográfico dessa nova industrialização aos trancos são claras – bem iluminadas, para quem quiser mesmo ver. São regras de comportamento, boas maneiras, polidez e sobriedade, algo que sempre faltou às artes cinematográficas tupiniquins mais independentes.

Porém, nem mesmo a Europa, desde meados do século XX, se interessa por estes temas civilizatórios, de uma busca pela tríade “bom, belo e verdadeiro”. Filmes que dão bilheteria nos EUA, a indústria do épico, são de violência, perseguição, históricos, e alguns “cults”. Vem à nossa frente, portanto, a pomposidade poética de um festival de Gramado, e de um pólo audiovisual como Paulínia, interior de São Paulo. O que é que tem procurado o público e o cinema feito no Brasil? Temo eu algum dia conversar com meu colega indiano sobre os filmes brasileiros, e dizer a ele que, por aqui, os espectadores vão ao cinema para receber passes e encarnar seres de outra dimensão – ironicamente a dimensão da tela, e do processo de identificação do cinema clássico em metáfora religiosa atual.


publicado no jornal Cinform, Aracaju, Setembro 2010

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