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A pose

Furtei de um outro blog essa fotografia. Queria falar um pouco sobre a pose.

O posar em fotos pode-se remeter ao posar para pinturas. Durante muitos séculos o trabalho artístico se valeu do posar por alguns motivos práticos e técnicos, já que só com a fotografia o instantâneo veio a ser captado pela técnica. Antes, desde as Madonnas de Da Vinci, os quadros de Caravaggio - cenas inteiras enquadradas, até os devaneios de um pintor mais próximo a uma abstração, como Van Gogh, eram representados de uma pose quase divina. Isso porque a arte possuía uma aura da eternidade, própria do medievo composto pelas regras estatais cristãs, religiosas e, por isso, sociais. A arte era quase toda posada, mesmo quando as cenas pintadas não eram imitações de uma pose.

Veio a fotografia, finalmente, nosso mundo moderno, e nossa espontaneidade anti-duração. Se para o homem comum medieval ficar umas oito horas parado diante de um pintor não era algo recusável - afinal havia pagamento pra isso -, hoje, com a imagem facilmente virtualizada e representada pela captação fotográfica, ninguém mais pensa em se prestar a esse papel e perda de tempo. No entanto, há estúdios de publicidade que cobram essa jornada de trabalho de algum(as) modelos e manequins que foram agraciados pelo dom da beleza. Fato é: o "posar" não pode ser mais o mesmo, ainda que tenha herança de um tempo dominado pela ubiquidade do olhar divino legitimado pelo olho-artista.

Hoje, posam todos que tiram fotos turísticas, ao lado de locais famosos, de pessoas famosas, de ruas famosas, de estátuas famosas. O importante aqui é que todos viram, enfim, estátuas por alguns segundos, até que se ouve o "pronto", do fotógrafo amador. Estátuas, mas de carne, pele e osso. São momentos divinizados, momentos únicos, que, se acaso são filmados, provocam até riso do espectador. Sim, porque são ridículos; mas não, porque não são incomuns. O posar diante de um fotógrafo quer dizer algo, em divagações mais sociais, que, se você me permite uns poucos minutos a mais desse seu posar diante da tela do computador (ou do papel, caso esse texto tenha sido impresso - ainda que eu desconfie que ele não seria), eu gostaria de fazê-lo.

Pense em um mundo posado. Isso está, talvez não por acaso, em um romance de Marcelo Rubens Paiva, chamado Blecaute. Todos parados, menos você, que pode andar, mexer com toda a gente que parece manequim de loja de roupa, pode entrar nas casas, saber da vida das pessoas, saber de tudo só com sua perambulação entre o cotidiano alheio. Tal como as câmeras do Big Brother, sim. Você pode usar de todo o seu voyeurismo nos quartos de hotel, ou de toda a sua curiosidade diante do mundo parado em shoppings, posado, transformado em estátua - completamente estatizado. É, além de um fetiche, um feitiço, uma magia enorme e imaginária, um acontecimento improvável. Mas só a título de provocação, vemos esse mundo imaginário por alguns segundos toda vez que uma máquina de fotografar está diante de uma pessoa comum - portanto, vaidosa. Vemo-lo quando alguém fala "vou tirar uma foto sua".

Há uma nuance histórica no "posar" que valeria a pena um estudo. Mas aqui estamos apenas em um textinho. O "poser", hoje, é alguém que adquire uma falsidade por exagero de sua vaidade, e se transforma num(a) boneco(a), que é manipulável pelas câmeras, máquinas de um certo poder. Essa magia instantânea de captar as almas parece afetar os vaidosos, e, por essa razão, estes entram em um personagem estático, como uma estátua, e se prestam ao clique da máquina observadora. Convenhamos: este personagem é repetido em várias cenas, diversos locais, seja qual for as circunstâncias, seja qual for a hora. É um "ser" da pessoa que se presta à eternidade, aquela divinização citada pela antiga arte, já que aquela fotografia tem (ou tinha, até pouco tempo) a potencialidade de persistir gerações. Ou seja, em outros termos mais precisos, você morre, mas seu personagem estático, criado pela sua vaidade sublime, fica para as vidas que ainda estão por vir.

Saiba você que este seu "ser", diante das qualificações, adjetivos de nossa sociedade contemporânea, é falso. Ele surge para que você não seja você, naquele momento, e que a foto ganhe um status maior de beleza. Você vira um corpo que pensa dominar, pensa ser bonito, que pensa ser eterno, mas não é, nada mais nada menos, que um boneco alienado. Uma estátua muito mal feita, por uma arte que, a despeito das grandes e boas intenções, não se completa, não possui história, não é ensinada, praticamente não existe. Quem, além de bons atores, consegue se transformar num corpo atraente diante de uma máquina fotográfica? Digamos que um publicitário consiga fazer isso com qualquer pessoa. Mentira...

Todos posam, como se todos fossem aquele narciso do citado Caravaggio. Estão diante de um poder, como dito, que oprime uma liberdade, e que aliena um despojamento, um fenômeno, um brilhantismo da realidade ambígua. O poder, apesar de tudo, é persistente, aliciador, mágico, usurpador em sua reificação. É um poder de manifestar nosso mais pobre instinto animal, que é o de se retrair e se transformar em presa. Aquele instinto que os psicanalistas gostam muito de identificar em seus diagnósticos mais sociais. A covardia, a falta de ação, a imobilidade social, e tudo isso associado à ostentação lívida e pálida, de um mundo consumista.

Vejamos onde essa alienação de nosso corpo vai dar, quando tivermos mais atenção diante de nossa postura frente às máquinas.

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