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Uma noite em 67

Sintetizando, numa entrevista, algo de uma memória sempre vem à tona quando quem está no ponto dianteiro das perguntas é alguém que viveu tais lembranças. Aí vem uma história quase perfeita que é compartilhada, comemorada, comentada, vista com comoção, elevada ao típico patamar de sombras empoeiradas e guardadas em prateleiras, que nos assombram no passado. Em uma época de atritos entre uma grande parcela da juventude mundial que tomava o poder das mídias, e uma tradição cheia de teias de aranhas – como foi o final da década de 60 -, os lugares desconhecidos de uma cultura revolucionariam um Brasil tão positivista e tão integralista, senhorial, conservador.

Falamos do III Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, que aconteceu em 1967, e deixou em arquivos atuais momentos singulares das movimentações culturais que viriam logo após essa data. Caso da estréia de Caetano Veloso com a música Alegria, Alegria; ou de uma invenção intelectual e estética de Chico Buarque, com Roda Viva; também de uma mistura fora de qualquer imaginação entre tudo o que se consumia e aspectos melódicos do popularesco, em Gilberto Gil com Domingo no Parque; até mesmo de atos de violência como o de Sérgio Ricardo ao quebrar a viola, levantando o debate sobre a “coincidência jungiana” à vencedora Ponteio, de Edu Lobo. Este festival com tantos espetáculos, tantas performances experimentais, tanta força da tradição do país, era transmitido ao vivo para todos os aparelhos televisivos do Brasil. Captado pelas lentes da TV, mas reorganizado pelo documentário “Uma Noite em 67”, de Renato Terra e Ricardo Calil, o festival ganha dimensões inimagináveis até então. Um poderoso filme, um poderoso ensaio dessa história que não se havia nunca perdido em discussões acaloradas sobre o rumo da MPB lá por aqueles idos.

Era, então, época de ditadura, de opressão simbólica, mas isso deixa os jovens músicos acuados. Com exceção de Gilberto Gil, como se vê no filme, que teve de ser trazido pelo diretor da Record para cantar 2 horas antes de sua apresentação por conta de uma crise de pânico. Apresentação esta que, junto a Rogério Duprat e os Mutantes, revolveriam toda a poeira da parcela mais intelectualizada do país, já que dali sairia também uma fagulha do Tropicalismo. Caetano, aliás, um tímido rapaz de 24 anos, cantaria fora do tom com guitarras elétricas, contra a decisão de Elis, Vandré e de uma grande platéia da Bossa Nova, juntando, como ele mesmo diz, rock inglês com marchinhas de Alcântara portuguesa. Do mais avançado pop da estética industrial até a mais antiga música carnavalesca de uma colonização atrasada.

Algo que brilha do filme, que estreou neste ano de 2010, e provavelmente chegará a Aracaju em breve, é o debate entre juventude e tradicionalismo. E como esse confronto estava nas entrelinhas do festival da canção da rede Record. Chico Buarque, após esse debate, ficaria isolado na sua persistência em continuar com o samba canção – sem se entregar às ondas da indústria global que era estruturada e fagocitada pelo canibalismo dos compositores baianos em São Paulo. Em certos termos, o filho de Sérgio Buarque de Hollanda foi escolhido como mocinho, e os “doces bárbaros” aqueles que deturpavam a ordem bem estabelecida pelo regime conservador. Mas que mocinho: Roda Viva alegorizava toda a contra-revolução instalada, e que iria se apertar mais ainda em 1968, com o AI – 5. Tudo isso tem resquícios hoje, ainda que Chico diga: “vejo as fotos e digo, olha como eu era bonito”.

São belas as fotos, mas mais belas as filmagens. Imagens de uma modernização de sentidos, mesmo através de uma tosca mídia televisiva que não entendia muito bem a utopia bem centrada daqueles jovens – de Roberto Carlos, Edu Lobo, Caetano, Chico, Gil, e de uma platéia enfurecida em sua festividade e atenção à letra, ao significado da arte.

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