Zizo, poeta alterego de Cláudio Assis, mas referência real |
Para as elites brasileiras, a pobreza é lixo a ser excluído. Para o cinema publicitário, a pobreza é matéria a ser adornada, floreada. Para a publicidade do poeta Zizo (interpretado pelo incansável Irandhir Santos), no filme de Cláudio Assis, o slogan que retorna como mote é: "abaixo a reciclagem e viva a lapidagem".
A estética do lixo passa por uma reciclagem no cinema publicitário do Sudeste em filmes. A pornochanchada, por exemplo, era uma reciclagem da boca do lixo, As comédias-besteirol de hoje são reciclagem das chanchadas. Fenômenos de filmes de favela são reciclagem do Cinema Novo. Da industrialização da Globo Filmes ao cinema da O2 e adjacentes, a publicidade toma formas culminantes hoje na produção cinematográfica. Temos o método já colocado à prova.
Cláudio Assis toma essa publicidade e a torna argumento panfletário de algo próximo do abismo. Mas não da maneira utópica. Não quer a revolução. Escolhe o choque, tudo bem, mas a tonalidade mais presente é a da anarquia e da iniciação política através da poesia. Cores que, no filme preto e branco, evocam um espírito de Vladímir Maiakóvski - uma fonte do mestre do improviso cinematográfico, Dziga Vertov. Fora da utopia, dentro de um inferno que o mastiga, o poeta é exasperado e foge da resignação expressando sentimentos líricos atrelados ao fluxo do rio corrente de sujeira. Motes de um cinema latino-americano, não?
Se os resquícios (dejetos) de uma forma morta, como parece ser o cinema são juntados como uma colagem autoral em Jim Jarmusch, como sequências inteiras gravadas em versos pasolinianos sobre uma marginalidade, em Carlos Reygadas este pulsar ganha em realidade straubiana, aquela na qual contemplamos a atrocidade com riso sádico. Certamente esse real, essa realidade que o cinema atual mais crítico tenta evocar como principal elemento da sétima arte, a do plano sequência alongado acima de qualquer montagem, é aquela mesma da arte cruel, do cru, do "a se fazer", "a se formar" futuramente. Cláudio Assis, diferente da chamada câmera faca de Sérgio Bianchi, permite uma realidade exagerada do universo recifense, nordestino, e em parte brasileiro, ganhar esse campo artístico em formação no Brasil através do plano sequência, e não do corte. Enquanto Sérgio Bianchi partia do panfleto simétrico, Cláudio prefere partir do manifesto do improviso. Com isso, dá voz a um grito que se escuta longe do centro capitalista brasileiro - o Sudeste.
Longe de afirmar, aqui, que Cláudio não é entendido em São Paulo. Os ratos, no sudeste, são os marginalizados - os nordestinos migrantes. Está imbricado no discurso histórico deste centro preconceituoso. Se estão febris, malucos, esquizofrênicos é porque estão pensando sua presença, sua vida, sua auto-afirmação perante esse palco geral de exploração e exclusão. Doença criativa, que reformula esse papel histórico dos Dois Brasis.
O que mais chama a atenção e deixa a todos extasiados no cinema deste autor recifense, claramente, são as performances puxadas pelos atores, e a naturalidade de seus desempenhos. Não existe isso em outro diretor no Brasil, atualmente. Por que só há isso nos filmes de Cláudio Assis? Porque no set existe liberdade, sinergia, há um gosto silencioso pelo gesto mais espontâneo, e quem sabe, milimetricamente procurado. Diferente de qualquer set de filmagens publicitário (do cinema publictário), com suas devidas exceções, que só expressam exasperação detrás das câmeras em gritarias e desespero pela hora-extra que se perde ali. Matheus Nachtergaele encara a figura de um quase lacônico coveiro, e pontua a versatilidade de seus rostos inventados. O efeito é de riso, porque o personagem é sério, como Matheus faz em outra filme publicitário do caos atual, de José Eduardo Belmonte, A Concepção (2000).
A proposta é óbvia: divulgar um tipo de poesia. Goste ou não goste, é uma proposta concisa e bastante evidente. E que faz parte do cinema. Qualquer expressividade que venha desse estilo, dessa confusão generalizada entre ficção e realidade, desta encenação um passo longo à frente de Nelson Rodrigues, é agora compreendida pelos mais ingênuos espectadores (se eles ainda existem hoje). Está tudo ali: tudo o que qualquer canalha procura. Erotismo, principalmente feminino. Violência, em diálogos. Arte, em lapidação comercial. Política desvairada... e morte.
Todavia, não há reciclagem da pobreza. Não havia em Pasolini e não há no cinema de poesia. Há criação nessa lapidação tateante, neste olhar que se abre aos poucos - olhar sobre a própria arte desconhecida no Brasil. Uma arte moderna da região Nordeste, por mais incrível que ela pareça. Mas contraditória, como é sempre o modo de se fazer arte sobre a realidade.
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