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Que horas ela volta?

Anna Muylaert (2015)
(The second mother, Une seconde mère)

Nem olhe pra esta piscina, Jéssica
Um plano de uma escada iluminada com certo rigor do meio de tarde, certa penumbra, fim do dia em que o sol pára de iluminar e entra a noite em que todos dormem com certa tranqüilidade. Menos a personagem principal chamada Val, interpretada pela agora apresentadora de TV da Rede Globo, Regina Casé. A empregada doméstica aguarda a hora de sua filha, Jéssica, chegar de Pernambuco.
Também esperam a hora chegar, os demais personagens da família de classe média-quase-alta paulistana do Morumbi. Que horas seriam? Hora que a servidão, ou a cultura da servilitude, ou da amizade do(a) agregado(a), do favor acima de qualquer serviço profissional, tomaria algum tipo de “consciência de sua classe social”. Seria assim, caso estivéssemos num ambiente de conversas da década de 70 – do cinema político, gênero que ambientava a chamada luta de classes em viés quase óbvio de instrução, ou revolução cultural.

Porém, amigos(as), estamos em 2015 – época em que tudo se obscurece numa falta de conversa, numa falta de diálogo, numa, muito pior, falta de reflexão sobre essa nossa cultura escravocrata herdada com toda a “benevolência” possível pelos “senhores e senhoras”. Anna, em uma entrevista para o programa Metrópolis da TV Cultura antes do lançamento nacional, cita Sérgio Buarque de Hollanda no que diz explicitamente que a colonização portuguesa no Brasil teve seu traço no “ócio” e não no “negócio”, sua negação. Aqui, o pais, se fez com festas e falta de compromisso com classes inferiores – está no filme o confinamento e sua naturalização numa espécie de ideologia à brasileira: tudo é feito na brincadeira, ou, com brincadeiras que amenizam a tensão que existe entre dominantes e dominados.

Lourenço Muttarelli, escritor ganhador de prêmios pelo Brasil, contracena com Regina, chora com ela, e por ela (a personagem que ela representa) e chega a dizer pouco da frustração artística masculina – as mulheres dominam o enredo do filme em três grandes impulsos:

1) na ostentação de um gestual de elite;
2) na impotência naturalizada de uma pessoa que se dispõe a servir,
3) na inadequação de uma nova geração que não aceita a grande série de valores (em moedas e em cultura) dessa distinção de classes tão arraigada pelo caráter histórico da desigualdade social.

Três personagens femininas, em um filme que narra uma figura materna que se sujeita a criar o filho de uma família que a oprime constantemente – mesmo sem querer - , para ter a educação de sua filha. Esta última, ninfa destruidora da distração de uma geração, tira da dormência um universo de clausura, de inoperância, falta de movimento: falta de vida. Traz tanta vida à trama que a desconhecida atriz Camila Márdila surpreende não somente pela atuação desenvolta, mas principalmente pelo sentimento que provoca. No fim entendemos sua vitalidade como uma reversão dessa figura materna em outras potências, que convivem na ordem menos conscientes.


Dizem alguns que é mais um filme da chamada “Era Lula”. Ascensão social, ou decadência de uma elite, comove muito mais o aspecto que há muito tempo não se via no cinema produzido no Brasil (aí talvez o cinema pernambucano explicitamente visualizado nos sons dos arredores, ou, mais fortemente o argentino de Lucrércia Martel ou Jorge Gragero), que é o sentimento por trás do que se vê. Esse elemento invisível, pasmem, é o mais explícito em nossas relações reais – à parte do cinema - , e que nos fazem ir ao filme como se assiste aos reality shows das TVS: precisamos de realidade, ou de uma realidade que poucos cineastas conseguem nos dar.

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