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O Irlandês - sobre o cidadão neoliberal dos EUA

Como se pode ver, os caminhos que textos tomam por aqui são distintos da crítica mainstream que a internet forja. Não faz parte deste veículo, um mero blog, imprimir, reproduzir, repetir ladainha de portais que tentam fazer publicidade de si mesmos, ou, do filme.

É neste sentido que afirmo: Scorsese, há alguns filmes passados, tenta nos revelar (nós, cidadãos do mundo e espectadores de cinema) quem é o famoso neoliberal norte-americano.

O Neoliberal comum

Um senhor pacato, pai de família que toma café todos os dias com suas filhas, apadrinhado por pessoas importantes do núcleo político (não-institucional, como a máfia) que influencia toda uma cultura dos EUA. Este liberal, que é mais que um liberal à la Adam Smith, é um assassino frio, candidato a capacho fiel de uma máfia dita latina em meio aos étnicos brancos, proto-fascistas, do país que hoje é centro do império mundial.

Este personagem também é o encarnado por Robert De Niro em Cassino (1995), um empreendedor de jogos em Las Vegas. É De Niro também em Os Bons Companheiros (1990). Passa o bastão para Leonardo Di Caprio (outro misto de irlandês com italiano) em filmes como O Aviador (2004), O Infiltrado (2006), O Lobo de Wall Street (2013), etc. O ponto aqui é: há uma espécie de pesquisa de Scorsese sobre este cidadão que, dentro da selvageria animalesca e violenta dos EUA, se afirma como neoliberal.

Este cidadão prega pelo livre mercado, pelas liberdades individuais, pelo direito de ir e vir (com sua arma), pela liberdade de expressão, pelo julgamento mais moralmente correto do espectador que se diz pacífico e cristão. É o mesmo cidadão que vibra com os assassinatos sangrentos cinematograficamente estilizados pelo diretor ítalo-americano.

Não é preciso dizer que Scorsese faz filmes que têm como tema a política nos EUA. Desde a formação de pequenas milícias de bairros e de famílias - algo que é visto de uma maneira bem detalhista e detalhada por Coppola em O Poderoso Chefão (toda a trilogia). A familia (famiglia) italiana vem de um sentimento de sangue, parentesco, desde a Sicília. Mas há parentescos alimentados pela confiança, exatamente como o italiano Russell  Buffalino (Joe Pesci) e o irlandês Frank Sheeran (De Niro). Um anel simboliza este elo de confiança, de milícia.

Não são memórias de um "sargento de milícias", pois os cabos que promovem assassinatos são pessoas distantes dos olhares militares - algo distinto daqui do Brasil. As milícias que se armam por lá são tipo "terceirizadas", ou seja, são pessoas comuns que prestam serviços importantes a núcleos mafiosos.

O Irlandês então expõe uma espécie de forma política de relações pessoais dos EUA. O racismo entre membros excluídos da nata britânica, os italianos e irlandeses, é colocado de lado. Esta união, portanto, se firma de uma maneira que se traveste de patriotismo - mas é, na verdade, extremamente distante de qualquer busca por oficialidade de um país, mesmo que em formação. A máfia, nos EUA, busca sobrevivência entre os indivíduos que se colocam à parte, sobretudo, da política institucional.

São criminosos, sim. Mas este não é o caráter mais relevante do olhar de Scorsese. Eles são, antes de tudo, pais de família: cidadãos de bem, como chamamos por aqui.

O Neoliberal e sua família

Este neoliberal busca sua sobrevivência e de seus pares, sua família. Isto é o mais importante. Se há algo errado, ele não busca a polícia - ausente no filme. Ele busca seus pares, ou sua própria capacidade de julgamento e de ação contra o que considera injusto. Ele resolve sozinho.

De Niro, uma espécie de lutador dessa selva sem Estado, vive imperiosamente nesse seu núcleo familiar - distinto da família Buffalino, que não se espanta com o sangue nas roupas do pater família. O irlandês esconde de sua esposa e filhas o seu "trabalho". Ou, ao menos, acha que esconde.

No fundo, sua família se distancia eticamente desse tipo de trabalho porque seu ethos é outro, mais próximo do anglo-saxão imperial. O tipo gângster pode ser um irlandês, mas dentro de uma horda italiana. As gangues brigavam somente na formação das cidades, como (Gangues) de Nova York. Na época de Wall Street, há o dinheiro como revolvedor das distinções étnicas.

E é este dinheiro que o Irlandês Frank Sheeran nem mesmo chega a ver de perto. Quem controla? Os italianos. E eles inclusive interferem no sindicato ao qual Frank fazia parte, junto a outro grande parceiro seu (uma espécie de político sindicalista), Jimmy Horfa (Al Pacino). Jimmy é o vínculo político de Sheeran, e também étnico... Mas o dinheiro manda, e o irlandês então continua com a máfia.

Vê-se, portanto, que as ligações não são mais sanguíneas, tal como na máfia italiana. É extremamente aceitável ter na famiglia um irlandês (que, inclusive, matou fascistas na segunda guerra). A confiança nasce de uma outra prática, nos EUA. Diferente, portanto: neoliberal. É esta ética que faz com que as relações entre pessoas da máfia não seja totalmente sanguínea, mas sim, uma família que se une na corrupção e na formação de um proto-sub-estado dentro das grandes cidades norte-americanas.

O porquê do neoliberalismo em Scorsese

O diretor procura o americano. Sua ânsia, seu impulso, sua maneira de se relacionar, sua sociedade. Este americano, em fundo, vem de uma história não-americana. Por quê, então, Scorsese tenta modelar esse liberal capitalista contemporâneo de uma maneira tão fria?

Este é um tema para uma pesquisa com mais fôlego. Porém, há aqui uma espécie de trilha.

Scorsese, uma pessoa de esquerda, entente os EUA como um lugar dos novos. Da novidade. Da modernidade, ou pós-modernidade, em sua intensidade mais imitada pelo mundo. Seus personagens masculinos são fortes e aptos a um tipo de império pelo dinheiro. Unicamente, em busca do dinheiro.

Só que, pelo dinheiro (mais uma vez é necessário notar aqui que o Irlandês não vê a cor do dinheiro tal como seus padrinhos - pois ele é um empregado assassino), o neoliberal é capaz de matar. Friamente.

Se o neoliberal mata, fora do Estado, é por um estilo de vida procurado e propagandeado como o melhor em todo o mundo. O estilo que tanto De Niro quanto Di Caprio representam em seus personagens, que os veste, os coloca o sotaque, os provoca como gangsters. Está então na frente dos filmes essa pesquisa de um cidadão que se coloca como comum, pacífico, mas é um assassino frio e sanguinário pelos seus "ideais".

Um ideal de país, portanto.

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