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crítica: O diabo de cada dia - Antônio Campos

Depois de Hitchcock, Scorsese, Tarantino, essas cenas de violência extrema passam pra nós como algo muito comum, muito "normal". É possível vê-las, também, em games hiper-realistas, naqueles RPGs com pessoas que fogem de assassinos. A cultura norte-americana foi visivelmente construída neste grande campo do serial killer, estilizado de Norman Bates a Ted Bundy.
Essas cenas estão no roteiro literário do escritor Donald Ray Pollock, que também é narrador over do filme. Diferentemente do realismo dos diretores citados no início deste texto, a agressividade é diretamente ligada à religiosidade puritana, provinciana dos Estados Unidos da América. País da liberdade, porém, armada. O fetiche, como um atributo que podemos dizer relativamente derivado dessa religiosidade, está no assassinato. Vem das guerras? É provável, como veio o pai do personagem principal, Arvin Russell. Aquele teria visto uma cruz, ensanguentada com algum corpo esquecido - e essa cruz participa do inicio ao fim da trama, se me permitem o trocadilho, "cruzada".

A crucificação e seu significado

Símbolo do sofrimento de um messias, a cruz marca um tipo de código cristão de nossa era pós-medieval. Essa cruz, uma encruzilhada nos EUA, é também um lugar da mira. Mira de armas sofisticadas. Está no centro dela os malditos perseguidos pela moral, mas também os salvadores moralistas da bondade divina. Não tem, enfim, quem não esteja no centro da questão. Um tipo de ambiente rural que não nos remete a absolutamente nada de nossa colonialidade brasileira. Mas, seria possível entendermos essa entranha da colonização norte-americana desde a província mais primitiva do país? 
Há algo do sacrifício, na encruzilhada. Um sacrifício pela moralidade, em vias da construção moral da família perfeita, no caso do norte. Mas a deturpação, o movimento "criativo" da sociedade proporcionou à família americana a hipocrisia. Porque, claro, ninguém é perfeito. A falsa moralidade adquire contornos muito bem delineados, muito requintados. Aquela mesma de um xerife com ambições políticas, e de sua irmã que se prostitui para matar qualquer um com seu, digamos, marido.

É um inferno, a realidade diante da cruz. A realidade criada por Donald, mas também uma possível verossimilhança e regozijo do espectador diante dela. É um cruzamento entre o bem e o mal. No centro, a mira: a morte. Não há quem se salve - talvez, os hippies em suas vans. Provavelmente, pela fuga desse ambiente marcado pela naturalização da crueldade. Mas no cruzamento, a monstruosidade é explícita. É gritante, em sua sutileza indireta. O medo até transforma o filme numa espécie de terror realista. Medo do que? - Arrisco: da realidade que é marcada por essa cruz religiosa, meta, mira cristã falsa como todas as relações sociais, como o próprio reverendo do vilarejo.

Realidade monstruosa, por fim. O que tem de bom, de legal, de entretenimento nisso?

Pergunta que fica também para a tradição norte-americana. É algo catártico, mas também é algo que nos traz conhecimento profundo das relações que se estabelecem por lá. Vem do Western, esse problema. Não deixa de ser interessante ele ser revivido por um diretor filho de brasileiros.

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