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Infiltrado na Klan (Spike Lee, 2018)

Spike Lee e John David Washington
Spike Lee e John David Washington

Difícil começar sobre este filme. Mas é possível encarar e dizer que Jordan Peele é como um produtor de novidades dentro de filmes norte-americanos, e novidades que matizam a questão racial. Básico. Racismo, nas Américas, é algo além do fato: é um fator doentio que movimenta nossa história. Peele, como Spike Lee, lutam de uma maneira integrada, ou seja, dentro do sistema, de forma imanente, contra essa forma doentia de se constituir a história.
Peele parece ter uma proposta estética, que, ali próxima a Spike Lee, veste como uma luva. O encaixe está entre a dramatização do cotidiano inserindo a questão racial, junto à comédia - ou o exagero verossímil - , o absurdo. Daria pra entrarmos numa comédia do absurdo, se este tipo de teatro não fosse europeu, e pior, com desenvolvimento na ironia britânica. Os filmes da blaxplotation chegaram no limite da dramatização de costumes, e deram um tom mais popular (de uma, como diz o personagem Filipe, encarnado por Adam Drive, heritage) e tradicional àquilo que se pode chamar de filmes de gueto. Não se diz que o blues, o jazz, a música black seja algo "popular"... Mas em cinema o trânsito da imagem é outro, mais complicado que o da música.
Esse ponto precisa ser explorado, principalmente dentro da cultura norte-americana: esta que nunca pareceu ter um tipo de gênero nacional-popular, tal como entendemos por aqui no Brasil. América do Norte é fundadora de culturas, de selos, de empresas. Sejam elas underground, independentes e fortes em guetos, sejam elas imperialistas e dominadoras de rádios e salas de cinema. No entanto, essa mesma América do Norte mostra ao mundo suas mazelas, suas feridas, sua doença, sua deterioração. Ela, distante de um remédio cultural, se emulsiona nessa loucura que é um tipo de cultura própria dela - que por alguns foi chamada de Pop.
Nos Estados Unidos, a cultura negra é talvez a mais forte em termos econômicos que em qualquer lugar do mundo. Por isso, é uma espécie de local mundial de tais culturas, ou tal cultura (só ver Spike Lee no Pelourinho ou no Vidigal pra entender isso). Ao mesmo tempo, o filme dramático que vem desde uma incursão de Quincy Jones nos seriados com Will Smith, sempre cai da comédia. Diferentemente da música - do blues, passando pelo jazz, ritmo mais black, soul, até o rap e hip hop. Quando se faz uma mensagem pela poesia popular, ou midiática, a questão parece ir sem o tom dominante cômico. Por que vemos isso tão forte no cinema? Está em Peele, e está em parte de Spike Lee.
Talvez um estudo, ou mesmo uma digressão maior sobre a blaxplotation nos dê mais chaves. Aquilo que assistimos como comédia, talvez, não tenha a intenção de soar cômico - totalmente, ao menos. Usar os elementos mais clichês, numa chave popular americana, pode derivar de uma graça mais afetiva, mais incisiva dentro do absurdo. Ainda que longe do teatro do absurdo europeu, a cultura negra cinematográfica da blaxplotation exagera nas atuações, nas falas, nas linhas condutivas e até mesmo na política para chamar a atenção dos espectadores à realidade. Esse ponto paradoxal nos deixa meio a deriva, mas é o ponto mais forte do filme Infiltrado na Klan (Blakkklansman, 2018 - Spike Lee).
Chegamos perto disso aqui no Brasil em filmes chamados "marginais". É o tom da ironia, esse o do absurdo que quer chamar atenção. Não que ele seja sempre efetivo, mas é um tipo de estratégia "popular". Quando digo popular, tento dizer "fora dos padrões midiáticos", ou mesmo "fora do mainstream". Filmes perto da ironia marginal, ao menos alguns da blaxplotation, soam mais uma crítica ao tipo de filme policial (ou o Noir) que um gênero próprio - e daí surge, sim um gênero próprio. Por isso o filme de Peele e Lee move um ponto crucial numa estética americana.
Mas, sabemos que Spike Lee não está muito próximo desse tipo de comédia de costumes. Ele parece querer mais política que estética. Insere realidade bruta, partes documentais em seus filmes: ele faz aquilo que um judeu como Walter Benjamin enfatizou - politiza a estética. Traz os espectadores ao mais fundo da realidade negra, e, neste filme, ganha o Oscar de roteiro adaptado (de um livro baseado em fatos reais). Não está, portanto, como em Peele, na dominante do absurdo. Usa isso, um filme blaxplotation década de 70, para nos colocar nas ruas. E nas ruas de Trump, da insanidade atual.
Nos é permitido sair da comédia, pois estamos rindo de coisas sérias. De um absurdo que realmente existe, e não parece exagerado. É um absurdo, portanto, extremamente fiel ao real, uma espécie de história que nos espanta justamente por ser uma raiz tão forte dos americanos red necks. Trump, aliás, vence em todo o interior do país, em toda a parte rural. 
Importante dizer que Joe Biden venceu em Colorado, Novo México e Arizona. Estados considerados do Sul, portanto, repletos de supremacistas. Provavelmente o filme tenha ajudado, já que foi lançado em 2018, teve êxito, e falou diretamente com esse público. Cinema, enfim, também serve pra isso.
Por favor, vejam o belo texto de preta e nerd 


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